FILOSOFIA CRISTÃ



CONCEITO GERAL DE FILOSOFIA CRISTÃ



Definição da filosofia


O homem sempre se questionou sobre temas como a origem e o fim do universo, as causas, a natureza e a relação entre as coisas e entre os fatos. Essa busca de um conhecimento que transcende a realidade imediata constitui a essência do pensamento filosófico, que ao longo da história percorreu os mais variados caminhos, seguiu interesses diversos, elaborou muitos métodos de reflexão e chegou a várias conclusões, em diferentes sistemas filosóficos.

O termo filosofia

O termo filosofia deriva do grego phílos (“amigo”, “amante”) e sophía (“conhecimento”, “saber”) e tem praticamente tantas definições quantas são as correntes filosóficas. Aristóteles a definiu como a totalidade do saber possível que não tenha de abranger todos os objetos tomados em particular; os estóicos, como uma norma para a ação; Descartes, como o saber que averigua os princípios de todas as ciências; Locke, como uma reflexão crítica sobre a experiência; os positivistas, como um compêndio geral dos resultados da ciência, o que tornaria o filósofo um especialista em idéias gerais. Já se propuseram outras definições mais irreverentes e menos taxativas. Por exemplo, a do britânico Samuel Alexander, para quem a filosofia se ocupa “daqueles temas que a ninguém, a não ser a um filósofo, ocorreria estudar”.

Definição da filosofia

Pode-se definir filosofia, sem trair seu sentido etimológico, como uma busca da sabedoria, conceito que aponta para um saber mais profundo e abrangente do homem e da natureza, que transcende os conhecimentos concretos e orienta o comportamento diante da vida. A filosofia pretende ser também uma busca e uma justificação racional dos princípios  primeiros e universais das coisas, das ciências e dos valores, e uma reflexão sobre a origem e a validade das idéias e das concepções que o homem elabora sobre ele mesmo e sobre o que o cerca.

Evolução da filosofia

Ao longo de sua evolução histórica, a filosofia foi sempre um campo de luta entre concepções antagônicas -- materialistas e idealistas, empiristas e racionalistas, vitalistas e especulativas. Esse caráter necessariamente antagonista da especulação filosófica decorre da impossibilidade de se alcançar uma visão total das múltiplas facetas da realidade. Entretanto, é justamente no esforço de pensar essa realidade, para alcançar a sabedoria, que o homem vem conquistando ao longo dos séculos uma compreensão mais cabal de si mesmo e do mundo que o cerca, e uma maior compreensão das próprias limitações de seu pensamento.

Origem da filosofia

As culturas mais primitivas e as antigas filosofias orientais expunham suas respostas aos principais questionamentos do homem em narrativas primitivas, geralmente orais, que expressavam os mistérios sobre a origem das coisas, o destino do homem, o porquê do bem e do mal. Essas narrativas, ou “mitos”, durante muito tempo consideradas simples ficções literárias de caráter arbitrário ou meramente estético, constituem antes uma autêntica reflexão simbólica, um exercício de conhecimento intuitivo.
Observando que os antigos narradores -- Homero, Hesíodo -- só transmitiram tradições, sem dar nenhuma prova de suas doutrinas, Aristóteles, um dos fundadores da filosofia ocidental, distinguiu entre filosofia e mito dizendo ser próprio dos filósofos o dar a razão daquilo que falam.

Estabeleceu-se assim na cultura ocidental uma primeira delimitação do conceito de filosofia como explicação racional e argumentada da realidade. No entanto, não havia sido definida nesse momento a separação da filosofia e das diversas ciências. Aristóteles, por exemplo, investigou tanto sobre metafísica especulativa, como sobre física, história natural, medicina e história geral, todas reunidas sob a denominação comum de filosofia. Somente a partir da baixa Idade Média e mais ainda do Renascimento, as diversas ciências se diferenciaram e a filosofia se definiu em seus atuais limites e conteúdos.

1 - OS GRANDES PERÍODOS DA FILOSOFIA


1.1. Filosofia pré-socrática

Pré-socráticos são os filósofos anteriores a Sócrates, que viveram na Grécia por volta do século VI a.C., considerados os criadores da filosofia ocidental. Essa fase, que corresponde à época de formação da civilização helênica, caracteriza-se pela preocupação com a natureza e o cosmos. Ela inaugura uma nova mentalidade, baseada na razão, e não mais no sobrenatural e na tradição mítica. A escola jônica (ou escola de Mileto), eleática, atomista e pitagórica são as principais do período.

Os físicos da Jônia, como Tales de Mileto (624 a.C.-545 a.C.), Anaximandro (610 a.C.-547 a.C.), Anaxímenes (585 a.C.-525 a.C.) e Heráclito (540 a.C.-480 a.C.), procuram explicar o mundo pelo desenvolvimento de uma natureza comum a todas as coisas e em eterno movimento. Heráclito, considerado o mais remoto precursor da dialética, afirma a estrutura contraditória e dinâmica do real. Para ele, tudo está em constante modificação. Daí sua frase “não nos banhamos duas vezes no mesmo rio”, já que nem o rio e nem quem nele se banha é o mesmo em dois momentos diferentes da existência. Os pensadores de Eléa, como Parmênides (515 a.C.-440 a.C.) e Anaxágoras (500 a.C.-428 a.C.), ao contrário de Heráclito, dizem que o ser é unidade e imobilidade e que a mutação não passa de uma aparência. Para Parmênides, o ser é ainda completo, eterno e perfeito.

Os atomistas, como Leucipo (460 a.C.-370 a.C.) e Demócrito (460 a.C.-370 a.C.), sustentam que o universo é constituído de átomos eternos, indivisíveis e infinitos reunidos aleatoriamente.

Pitágoras (580 a.C.-500 a.C) afirma que a verdadeira substância original é a alma imortal, que preexiste ao corpo e no qual se encarna como em uma prisão, como castigo pelas culpas da existência anterior. O pitagorismo representa a primeira tentativa de apreender o conteúdo inteligível das coisas, a essência, prenúncio do mundo das idéias de Platão.




1.1.1. Filosofia clássica (de 470 a 320 a.c.)
A Filosofia da Grécia Antiga teve nos sofistas e em Sócrates seus principais expoentes. Eles se distinguem pela preocupação metafísica, ou procura do ser, e pelo interesse político em criar a cidade harmoniosa e justa, que tornasse possível a formação do homem e da vida de acordo com a sabedoria. Este período corresponde ao apogeu da democracia e é marcado pela hegemonia política de Atenas.

Os sofistas, filósofos contemporâneos de Sócrates, como Protágoras de Abdera (485 a.C.-410 a.C.) e Górgias de Leontinos (485 a.C.-380 a.C.), acumulam conhecimento enciclopédico e são educadores pagos pelos alunos. Pretendem substituir a educação tradicional, destinada a formar guerreiros e atletas, por uma nova pedagogia, preocupada em formar o cidadão da nova democracia ateniense. Com eles, a arte da retórica – falar bem e de maneira convincente a respeito de qualquer assunto – alcança grande desenvolvimento.

Conhecido somente pelo testemunho de Platão, já que não deixou nenhum documento escrito, Sócrates (470 a.C.?-399 a.C.) desloca a reflexão filosófica da natureza para o homem e define, pela primeira vez, o universal como objeto da Ciência. Dedica-se à procura metódica da verdade identificada com o bem moral. Seu método se divide em duas partes. Pela ironia (eironéia, do grego: perguntar), ele força seu interlocutor a reconhecer que ignora o que pensava saber. Descoberta a ignorância, Sócrates tenta extrair do interlocutor a verdade contida em sua consciência (método denominado de maiêutica).

Discípulo de Sócrates, Platão (427 a.C.?-347 a.C.?) afirma que as idéias são o próprio objeto do conhecimento intelectual, a realidade metafísica (ver Platonismo). Para melhor expor sua teoria, utiliza-se de uma alegoria, o mito da caverna, no qual a caverna simboliza o mundo sensível, a prisão, os juízos de valor, onde só se percebem as sombras das coisas. O exterior é o mundo das idéias, do conhecimento racional ou científico. Feito de corpo e alma, o homem pertenceria simultaneamente a esses dois mundos. A tarefa da Filosofia seria a de libertar o homem da caverna, do mundo das aparências, para o mundo real, das essências. Platão é considerado o iniciador do idealismo.

Seguidor de Platão, Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.) aperfeiçoa e sistematiza as descobertas de Platão e Sócrates. Desenvolve a lógica dedutiva clássica (formal), que postula o encadeamento das proposições e das ligações dos conceitos mais gerais para os menos gerais. A lógica, segundo ele, é um instrumento para atingir o conhecimento científico, ou seja, aquilo que é metódico e sistemático. Ao contrário de Platão, afirma que a idéia não possui uma existência separada – ela só existe nos seres reais e concretos.
1.2. Filosofia  pós-socrática de 320 a.C. até o início da era cristã

As correntes filosóficas do ceticismo, epicurismo e estoicismo traduzem a decadência política e militar da Grécia.

Primeira grande corrente filosófica após o aristotelismo, o ceticismo, que tem em Pirro (365 a.C.?-275 a.C.) seu principal representante, afirma que as limitações do espírito humano nada permitem conhecer seguramente. Assim, conclui pela suspensão do julgamento e permanência da dúvida. Ao recusar toda afirmação dogmática (ver Dogmatismo), prega que o ideal do sábio é o total despojamento, o perfeito equilíbrio da alma, que nada pode perturbar. Os cínicos, como Diógenes (413 a.C.-323 a.C.) e Antístenes (444 a.C.-365 a.C), desprezam as convenções sociais para levar uma vida natural primitiva. Afirmam que só a virtude, por libertar o homem do desejo de possuir bens materiais, pode purificá-lo.

Epicuro (341 a.C. -270 a.C.) e seus seguidores, os epicuristas, viam no prazer, obtido pela prática da virtude, o bem. O prazer consiste no não-sofrimento do corpo e na não-perturbação da alma. Os estóicos, como Sêneca (4 a.C.- 65 d.C.) e Marco Aurélio (121-180), que se opõem ao epicurismo, pregam que o homem deve permanecer indiferente a circunstâncias exteriores, como dor, prazer e emoções. Procuram   submeter   sua conduta à razão, mesmo que isso traga dor e sofrimento, e não prazer.

No século III da Era Cristã, Plotino (205-270) pensa o platonismo na perspectiva histórica do Império Romano. As doutrinas neoplatônicas têm grande influência sobre os pensadores cristãos.

1.3. Filosofia  medieval

Ao retomar as idéias de Platão, Santo Agostinho (354-430) identifica o mundo das idéias com o mundo das idéias divinas. Através da iluminação, o homem recebe de Deus o conhecimento das verdades eternas. Esta corrente da Filosofia e seus desenvolvimentos são conhecidos como patrística, por ser elaborada pelos padres da Igreja Católica. Entre os séculos V e XIII predomina a escolástica, o conjunto das doutrinas oficiais da Igreja, fortemente influenciadas pelos pensamentos de Platão e Aristóteles. Os representantes da escolástica estão preocupados em conciliar razão e fé e desenvolver a discussão, a argumentação e o pensamento discursivo. Uma das principais correntes filosóficas da época é o tomismo, doutrina escolástica do teólogo italiano Santo Tomás de Aquino  (1225-1274), que encontra correspondência na estrutura socioeconômica do feudalismo, rigidamente estratificada.

1.4. Filosofia  moderna

A desintegração das estruturas feudais, as primeiras grandes descobertas da Ciência – como o heliocentrismo  de  Galileu  Galilei   e as leis das órbitas planetárias de Kepler – e a ascensão da burguesia assinalam a crise do pensamento medieval e a emergência do Renascimento. Em contraste com a filosofia medieval, religiosa, dogmática e submissa à autoridade da Igreja, a filosofia moderna é profana e crítica. Representada por leigos que procuram pensar de acordo com as leis da razão e do conhecimento científico, caracteriza-se pelo antropocentrismo – atitude que consiste em considerar o homem o centro do universo – e humanismo. O único método aceitável de investigação filosófica é o que recorre à razão. René Descartes  (1596-1650), criador do cartesianismo, é considerado o fundador da filosofia moderna. Ele inaugura o racionalismo, doutrina que privilegia a razão, considerada fundamento de todo o conhecimento possível. Dentro desta corrente destacam-se também Spinoza (1632-1677) e Leibniz (1646-1716).

Ao contrário dos antigos pensadores que partiam da certeza, Descartes parte da dúvida metódica, que põe em questão todas as supostas certezas. Ocorre a descoberta da subjetividade, ou seja, o conhecimento do mundo não se faz sem o sujeito que conhece. O foco é deslocado do objeto para o sujeito, da realidade para a razão. O percurso da dúvida cartesiana, ao colocar em questão a existência do mundo, descobre o ser pensante (“Penso, logo existo”).

Além do racionalismo, as duas principais correntes da filosofia moderna são o empirismo e o idealismo, movimentos que têm relação com a ascensão econômica e social da burguesia e com a Revolução Industrial.

No século XVII, o inglês Francis Bacon (1561-1626) critica o método dedutivo da tradição escolástica, que parte de princípios considerados como verdadeiros e indiscutíveis, e esboça as bases do método experimental, o empirismo, que considera o conhecimento como resultado da experiência sensível. Na mesma linha, estão os pensamentos de Thomas Hobbes (1588-1679), John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776). O empirismo pode ser considerado precursor do positivismo.

Século XVIII – O racionalismo cartesiano e o empirismo inglês preparam o surgimento do iluminismo, no século XVIII, caracterizado pela defesa da Ciência e da racionalidade crítica, contra a fé, a superstição e o dogma religioso. Contemporâneo da Revolução Industrial representa os interesses da burguesia intelectual da época e influencia a Revolução Francesa. Os principais nomes do movimento são Voltaire  (1694-1778) e Jean-Jacques Rousseau  (1712-1778). Immanuel Kant (1724-1804) deseja fazer a síntese do racionalismo e do empirismo, a partir de uma análise crítica da razão. Supera esses dois movimentos ao afirmar que o conhecimento só existe a partir dos conceitos de matéria e forma: a matéria vem da experiência sensível e a forma é dada pelo sujeito que conhece.
O idealismo, a terceira grande corrente da filosofia moderna, consiste na interpretação da realidade exterior e material a partir do mundo interior, subjetivo e espiritual. Isso implica na redução do objeto do conhecimento ao sujeito conhecedor. Ou seja, o que se conhece sobre o homem e o mundo é produto de idéias,   representações   e   conceitos  elaborados   pela consciência humana. Um dos principais expoentes é Friedrich Hegel (1770-1831). Para explicar a realidade em constante processo, Hegel estabelece uma nova lógica, a dialética. Defende que todas as coisas e idéias morrem. Essa força destruidora é também a força motriz do processo histórico.

Século XIX – O positivismo de Auguste Comte  (1798-1857) considera apenas o fato positivo (aquele que pode ser medido e controlado pela experiência) como adequado para estudo. É uma reação contra o idealismo e as teorias metafísicas do pensamento alemão. O método é retomado no século XX, no neopositivismo, cujo principal representante é Ludwig Wittgenstein (1889-1951).

Ainda no século XIX, Karl Marx  (1818-1883) utiliza o método dialético e o adapta à sua teoria, o materialismo histórico, que considera o modo de produção da vida material como condicionante da História. O marxismo  critica a filosofia hegeliana (“não é a consciência dos homens que determina seu ser, mas, ao contrário, é seu ser social que determina sua consciência”) e propõe não só pensar o mundo, mas transformá-lo. Assim, formula os princípios de uma prática política, voltada para a revolução. Ganha força com a vigência do socialismo em vários países, como a União Soviética, onde era a filosofia oficial.

Nesta época, surgem também nomes cuja obra permanece isolada, sem filiar-se a uma escola determinada, como é o caso de Friedrich Nietzsche  (1844-1900). Ele formula uma crítica aos valores tradicionais da cultura ocidental, como o cristianismo, que considera   decadente  e  contrário  à  criatividade e  espontaneidade humana. A tarefa da Filosofia seria, então, a de libertar o homem dessa tradição. No fim do século XIX, o pragmatismo defende o empirismo no campo da teoria do conhecimento e o utilitarismo (busca a obtenção da maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas) no campo da moral. Valoriza a prática mais do que a teoria e dá mais importância às conseqüências e efeitos da ação do que a seus princípios e pressupostos.



1.5. Renascimento

As grandes transformações culturais, econômicas e sociais dos séculos XV e XVI afetaram também a filosofia, que, de monopólio até então quase exclusivo da classe universitária (“escolástica” é o mesmo que “escolar”) passou a interessar a uma outra camada de intelectuais, sem vínculo com a universidade e mais ligados à aristocracia e à cultura dos palácios. O resultado foi a ruptura dos vínculos com a teologia e um crescente processo de  secularização da filosofia. Entre muitos dos novos intelectuais, o interesse primordial já não era pelos temas sacros (divinae litterae, “letras divinas”) e sim pela literatura secular (humanae litterae), daí seu nome de “humanistas”. As preocupações dos filósofos renascentistas, que seriam desenvolvidas nos séculos posteriores, giraram em torno de três grandes temas: o homem, a sociedade e a natureza.

Foram os humanistas que se encarregaram da reflexão sobre o primeiro desses temas. A nova organização do pensamento renascentista fez prevalecer Platão sobre Aristóteles, a retórica sobre a dialética medieval,  os   diálogos   literários    sobre   as  disputas lógicas escolásticas. Com a recuperação da literatura clássica, manifestaram-se também as influências das filosofias do último período da antiguidade, como o atomismo, o ceticismo e o estoicismo.

No pensamento social, sobressaiu a figura de Nicolau Maquiavel, que defendeu em O príncipe (1513) a aplicação da “razão de estado” sobre as normas morais. No século XVII destacou-se no pensamento político as figuras do inglês Thomas Hobbes e do holandês Hugo Grotius. O primeiro defendeu a existência de um estado forte como condição da ordem social; Grotius apelou para a lei natural como salvaguarda contra a arbitrariedade do poder político.

1.6. Filosofia  contemporânea

A partir do começo do século XX teve início uma reflexão radical sobre a natureza da filosofia, sobre a determinação de seus métodos e objetivos. No que diz respeito ao método, destacaram-se as novas reflexões sobre a epistemologia ou ciência do conhecimento -- surgidas a partir do estudo analítico da linguagem -- e o impulso dado à filosofia da ciência. As preocupações fundamentais do pensamento filosófico foram as concernentes ao homem e sua relação com o mundo que o cerca.

Dentro da chamada filosofia analítica, o empirismo lógico do Círculo de Viena foi uma das correntes filosóficas que mais ressaltaram ser a filosofia como um método de conhecimento. Para essa corrente, o objeto da filosofia não é a proposição de um sistema universal e coerente que permita explicar o mundo, mas    sim   o   esclarecimento     da     linguagem    das proposições lógicas ou científicas. Ora, para que elas tenham sentido, devem ser verificáveis, de tal modo que as que não o forem -- por exemplo, proposições acerca da ética ou da religião -- carecem de qualquer interesse filosófico. Também a escola de Oxford considerou a linguagem como objeto de seu estudo, se bem que tenha concentrado sua atenção na linguagem comum, na qual quis descobrir, latentes, as várias concepções elaboradas sobre o mundo. O austríaco Ludwig Wittgenstein insistiu na importância fundamental do estudo da linguagem e afirmou que ela participa da estrutura da realidade, já que não é senão um reflexo, uma “figura”, da mesma.

A fenomenologia de Edmund Husserl propôs uma análise descritiva que permitisse chegar à evidência da “própria coisa”, não como existente mas como pura essência. Para o vitalismo de Henri Bergson há dois modos de conhecimento: o analítico, no campo da ciência, e a intuição, própria da filosofia e único meio de captar a profundidade do homem e do mundo.

No que diz respeito às inquietações e propostas da moderna filosofia, cumpre citar o instrumentalismo de John Dewey, que estabeleceu como orientação da filosofia e como critério da verdade a utilidade de uma idéia face às necessidades humanas e sociais; o existencialismo, que antepôs, na sua reflexão filosófica, a própria existência do homem a qualquer outra realidade; ou o estruturalismo, que postulou, no estudo de qualquer realidade, que ela devia ser considerada nas suas inter-relações com o todo de que faz parte.

Numerosos filósofos integraram em seu pensamento elementos pertencentes a escolas filosóficas diferentes. Sartre, por exemplo, foi existencialista e marxista, e os pensadores da chamada escola de Frankfurt ensaiaram uma síntese de marxismo e psicanálise.

Tanto o marxismo, que com sua pretensão de constituir um instrumento transformador da sociedade, ultrapassou a simples classificação de escola filosófica, quanto a psicanálise, que, ao contrário, somente pretendeu em princípio ser uma teoria e uma terapia psicológicas, exerceram influência poderosa no pensamento filosófico contemporâneo.


2 - FILOSOFIA ANALÍTICA

Dentro do pensamento contemporâneo, o que se costuma chamar de filosofia analítica não é exatamente um movimento homogêneo, e sim um conjunto de tendências. Mas essa denominação genérica é plenamente justificável, na medida em que, diante dos problemas filosóficos, essas tendências partilham uma determinada atitude que não tinha sido desenvolvida anteriormente.

O que faz essas correntes parecerem aparentadas entre si é a ênfase em ver a filosofia, antes de tudo, como análise -- ou seja, elucidação, esclarecimento. Nesse aspecto, seu interesse voltou-se fundamentalmente para a lógica e a análise dos conceitos subjacentes à linguagem, considerando que muitos dos dilemas filosóficos habituais podem ser resolvidos -- ou deixados de lado, por insolúveis – mediante o estudo dos termos em que estão expostos.

Por suas concepções, a filosofia analítica se liga à tradição empirista anglo-saxônica. Não é de estranhar, portanto, que seu início se identifique com dois filósofos britânicos de Cambridge, Bertrand Russell e G. E. Moore, ambos nascidos na década de 1870, e que o enfoque dado por eles à percepção se vincule estreitamente ao proposto por John Locke no século XVII.

Bertrand Russell se caracterizou por abordar os problemas filosóficos através da lógica formal e por considerar que o único meio de adquirir conhecimento do mundo eram as ciências físicas. A teoria de Russell estava profundamente relacionada com a dos positivistas lógicos da escola de Viena, para os quais a tarefa principal da filosofia era distinguir entre as afirmações demonstráveis a partir da lógica e dos dados empíricos e as que não passavam de enunciados metafísicos indemonstráveis, ou “pseudoproposições”.

Moore, ao contrário, nunca achou que fosse preciso empregar a lógica formal ou converter a filosofia em ciência. Defendeu o senso comum frente à grandiloqüência metafísica e sustentou que o caminho adequado para resolver um problema filosófico consistia em perguntar qual era sua causa.

Figura básica na história da filosofia analítica, com dois períodos criativos diferenciados e mesmo antitéticos, foi o lógico austríaco Ludwig Wittgenstein, que ensinou em Cambridge. Sua primeira fase é representada pelo Tractatus logico-philosophicus (1922;  Tratado  lógico-filosófico),  no  qual defendia um atomismo lógico. No nível lingüístico, as proposições são os átomos, ou seja, os enunciados mais simples se podem fazer sobre o mundo. Sua segunda fase foi marcada pelas Philosophische Untersuchungen (1953; Pesquisas filosóficas), publicadas depois da morte do autor, que nelas adotou pontos de vista diametralmente opostos aos anteriores. Nessa segunda obra, ele sustentou que a linguagem é um instrumento que pode ser empregado para um número indefinido de propósitos, uma instituição humana não sujeita a regras. Os “jogos da linguagem” são usos lingüísticos e correspondem à função pragmática e ativa da linguagem. As idéias de Wittgenstein nessa etapa foram acompanhadas por pensadores como os ingleses John Austin e Gilbert Ryle, os quais enfatizaram a função social da linguagem e a usaram como campo de investigação para o estudo dos processos mentais do indivíduo.

A gramática transformacional generativa do americano Noam Chomsky, que deu novo rumo às teorias lingüísticas, por sua vez adotava pontos desenvolvidos por Austin e Ryle. O enfoque mais positivista da filosofia analítica também permanece latente em diversos pensadores, entre os quais outro americano, Willard Van Orman Quine.

2.1. Filosofia Indiana

Ao contrário dos gregos, os hindus desprezaram a física e a cosmologia em favor da ontologia e podem ser considerados os verdadeiros fundadores da lógica e da metafísica. Taranto narra a visita de um filósofo hindu a Sócrates, e o Timeu de Platão é de nítida inspiração hinduísta.

Filosofia indiana é a denominação genérica que se dá ao conjunto de concepções, teorias e sistemas desenvolvidos pelas civilizações do subcontinente indiano. Três conceitos fundamentam o pensamento filosófico indiano: o eu, ou alma (atman), as ações (karma), e a libertação (moksha). Exceto pelo charvaka (materialismo radical), todas as filosofias indianas lidam com esses três conceitos e suas inter-relações, embora isso não signifique que aceitem sua validade objetiva precisamente da mesma maneira.

Dos três conceitos, o karma, que representa a eficácia moral das ações humanas, parece ser o mais tipicamente indiano. O conceito de atman corresponde, de certa maneira, ao conceito ocidental do eu espiritual transcendental ou absoluto. O conceito de moksha como o mais alto ideal igualmente aparece no pensamento ocidental, especialmente durante a era cristã, embora talvez nunca tenha sido tão importante quanto o é para a mente hindu. A maioria das filosofias indianas aceita o moksha como algo possível, e a “impossibilidade do moksha” (anirmoksha) é tida como uma falácia material que pode tornar viciosa uma teoria filosófica.
2.2. Textos sagrados

Os escritos sagrados da cultura hindu, sobretudo os Vedas (os mais antigos textos sagrados da Índia), os Upanishads e o Mahabharata, há muito influenciam o pensamento filosófico indiano.

Os hinos védicos, escrituras hindus datadas do segundo milênio antes da era cristã, são os mais antigos registros remanescentes, na Índia, do processo pelo qual a mente humana produz seus deuses, bem como do processo psicológico da produção de mitos, que leva a profundos conceitos cosmológicos.

Os Upanishads (tratados filosóficos indianos) contêm uma das primeiras concepções da realidade universal, onipresente e espiritual que conduzem ao monismo radical (absoluto não-dualismo, ou unidade essencial da matéria e do espírito). Também contêm antigas especulações dos filósofos indianos sobre a natureza, a vida, a mente e o corpo humanos, além de ética e filosofia social.

2.3.Sistemas ortodoxos

Os sistemas clássicos, ou ortodoxos, chamados darsanas, discutem questões como o status do indivíduo finito; a distinção, assim como a relação, entre corpo, mente e indivíduo; a natureza do conhecimento e os tipos de conhecimento válidos; a natureza e a origem da verdade; os tipos de entidades que se pode dizer que existem; a relação entre realismo e idealismo; a questão sobre se os universos ou as relações são básicos; e o importantíssimo problema do moksha, ou libertação, sua natureza e os caminhos que a ela conduzem.

As várias filosofias indianas apresentam, no entanto, tal diversidade de visões, teorias e sistemas, que se torna quase impossível distinguir características comuns a todas. A aceitação da autoridade dos Vedas caracteriza todos os sistemas ortodoxos (astika): Nyaya, Vaisesika, Samkhya, Ioga, Purva Mimansa e Vedanta. Os sistemas não-ortodoxos (nastika) entre eles o charvaka, o budismo e o jainismo, rejeitam a autoridade védica. Mesmo entre os filósofos ortodoxos, porém, a fidelidade aos Vedas limitou muito pouco a liberdade das especulações, e os Vedas podiam ser citados para legitimar uma vasta diversidade de idéias, fossem monistas ou atomistas.

Mimansa, ou Purva Mimansa, é o sistema que fornece regras para a interpretação dos Vedas e oferece uma justificativa filosófica para a observância do ritual védico. O Vedanta forma a base da maioria das escolas modernas do hinduísmo e seus principais textos são os Upanishads e o Bhagavad-Gita. Ao contrário do Mimansa, é um sistema interessado na interpretação filosófica dos Vedas, mais que com seus aspectos ritualísticos.

Em sânscrito, Vedanta significa a “conclusão” (anta) dos Vedas. Como eram muitas as interpretações, desenvolveram-se várias escolas de Vedanta que, no entanto, têm muitas crenças em comum: transmigração do eu e o desejo de libertar-se do ciclo de renascimentos (samsara); a autoridade dos Vedas como meio para essa libertação; Brahma como motivo da existência do mundo; e o atman como agente de seus próprios atos e, portanto, receptor das conseqüências da ação (phala). Todas as escolas de Vedanta rejeitam tanto as filosofias heterodoxas do budismo e do jainismo como as conclusões das outras escolas ortodoxas. Sua influência no pensamento indiano é tão profunda que se pode dizer que, em qualquer de suas formas, a filosofia hindu se tornou Vedanta.

A  Nyaya  examina  em profundidade o método de raciocínio conhecido como inferência. Essa escola é importante por sua análise da lógica e da epistemologia. Já o Vaisesika sobressai por suas tentativas de identificar, inventariar e classificar as entidades da realidade que se apresentam à percepção humana. A Samkhya adota um dualismo coerente entre as ordens da matéria e as do eu, ou alma. Nessa escola, o conhecimento correto consiste na habilidade do eu de se distinguir da matéria. A Ioga influenciou muitas outras escolas por sua descrição da disciplina prática para realizar intuitivamente o conhecimento metafísico proposto pelo sistema Samkhya, a que a Ioga está intimamente relacionada.

Cada uma dessas escolas de pensamento foi sistematizada por meio dos conjuntos de sutras. Ao reunir um determinado número de aforismas, fórmulas ou regras breves e de fácil memorização, os sutras resumem cada uma das doutrinas.

Filosofia indiana e pensamento ocidental. Entre os temas considerados pelo pensamento indiano e ignorados pelo ocidental estão a origem (utpatti) e a apreensão (jnapti) da verdade (pramanya). Os problemas que os filósofos indianos na maioria ignoraram, mas que ajudaram a dar forma à filosofia ocidental, incluem a questão se o conhecimento surge da experiência ou da razão, além das distinções entre o juízo analítico e sintético e entre verdades contingentes e necessárias.

A filosofia indiana começou a interessar o Ocidente no século XVIII, quando foi feita a tradução do Bhagavad-Gita. No século seguinte, Anquetil-Duperron traduziu do persa, em latim, cinqüenta dos Upanishads. Foi também no século XIX que a Índia entrou  em    contato   com   o   pensamento   ocidental, especialmente com as filosofias empiristas, utilitaristas e agnósticas da Grã-Bretanha. No fim do século, John Stuart Mill, Jeremy Bentham e Herbert Spencer eram os pensadores mais influentes nas universidades indianas.
As idéias influenciadas pelo pensamento ocidental serviram para criar uma vertente de orientação secular e racional, ao mesmo tempo em que estimularam movimentos sociais e religiosos, entre os quais o movimento Brahmo (Brahma) Samaj, fundado por Rammohan Ray. No fim do século XIX, o grande santo Ramakrishna Paramahamsa de Calcutá renovou o interesse pelo misticismo, e muitos jovens racionalistas e céticos se converteram à fé que ele representava. Ramakrishna pregava uma diversidade essencial de caminhos que levam à mesma meta. Seus ensinamentos ganharam forma intelectual no trabalho de Swami Vivekananda, seu famoso discípulo.

2.4. Século XX

A primeira faculdade de filosofia da Índia surgiu na Universidade de Calcutá, no início do século XX, e o primeiro catedrático da matéria foi Sir Brajendranath Seal, acadêmico versátil que dominava diversas disciplinas científicas e humanísticas. Sua principal obra publicada é As ciências positivas dos antigos hindus, que discorre sobre a história da ciência e relaciona os conceitos filosóficos hindus a suas teorias científicas.

Em pouco tempo, porém, os filósofos mais estudados nas universidades indianas passaram a ser os alemães Kant e Hegel, e os sistemas filosóficos (com antigos foram avaliados à luz do idealismo alemão). A noção hegeliana do espírito absoluto encontrou ressonância na antiga noção vedanta de Brahma. O mais eminente estudioso hindu hegeliano é Hiralal Haldar, que abordou o problema da relação da personalidade humana com o absoluto, como se evidencia em seu livro Neo-hegelianismo. O acadêmico kantiano que se tornou mais conhecido foi K. C. Bhattacharyya.

Alguns indianos que viveram na primeira metade do século XX merecem menção por suas contribuições originais ao pensamento filosófico. Sri Aurobindo, ativista político que mais tarde se tornou yogin, vê a ioga como uma técnica não apenas de libertação pessoal, mas também de cooperação com a necessidade cósmica de evolução que levará o homem a um estado de consciência supramental. Rabindranath Tagore caracterizou o absoluto como a pessoa suprema e colocou o amor acima do conhecimento.

Para Mahatma Gandhi, líder social e político, a unidade da existência, que ele chamou de “verdade”, pode realizar-se pela prática da não-violência (ahimsa), em que a pessoa atinge o limite máximo da humildade. Sob a influência do idealismo hegeliano e da filosofia da mudança, de Henri Bergson, o poeta e filósofo Mohamed Iqbal concebeu uma realidade criativa e essencialmente espiritual.

2.5. Filosofia Islâmica

O pensamento árabe representou, em suas mais remotas origens, uma dinâmica projeção dos grandes sistemas filosóficos gregos, ainda que vazado em língua semítica e fundamente modificado sob a influência oriental. A dimensão desse fato torna-se imensa quando se considera que o Ocidente deve aos filósofos árabes quase toda a preservação, já em nível crítico, do platonismo e, sobretudo, do aristotelismo.

Filosofia islâmica é o pensamento expresso em língua árabe e intimamente relacionado à religião muçulmana que floresceu entre os séculos VII e XV. Excluem-se dessa denominação as tendências modernas e contemporâneas da filosofia árabe, analisadas apenas como floração do Oriente dentro e fora dos limites da Idade Média latina.

Na origem e, a rigor, ao longo de toda a sua evolução, a filosofia árabe transmite ao mundo ocidental os fundamentos de quase todo o pensamento filosófico do Renascimento, em particular na Espanha e na Itália. Sem a contribuição dos comentadores árabes, o Renascimento seria depositário apenas do monólogo cristão da Idade Média. Seria correto dizer que os próprios pensadores medievais, em particular os tomistas, pagaram pesado tributo a esses ousados “heréticos” orientais.

2.6. Seitas e escolas teológicas

Em seus primórdios, a filosofia árabe foi principalmente uma filosofia de teólogos, que devem tudo às crenças e tradições religiosas muçulmanas. Até o século IX, as especulações filosóficas do mundo árabe restringiam-se às discussões teológicas das primeiras seitas e escolas ascéticas, cuja suprema preocupação residia no exame de questões éticas e morais. O primeiro  grande  representante  dessa  época  e notável cultor da reflexão moral de índole teórica foi Hasan al-Basri, que integrou o grupo chamado Companheiros do Profeta, responsável pelo início da maioria das discussões teológicas que logo se cristalizariam na constituição de seitas e escolas teológicas, como as de Antioquia (século III), de Nasibim, em comunidade de fala síria, e de Nasibim-Edessa, a principal delas, que floresceu entre os séculos IV e V e reuniu os nestorianos condenados como heréticos pelo Concílio de Éfeso (431). A esses nestorianos somaram-se depois outras seitas igualmente heréticas, como as dos monofisistas (responsáveis pela introdução do misticismo e dos ideais neoplatônicos), dos zoroastrista persas, dos pagãos de Harran e até mesmo dos judeus.

Tais seitas e escolas -- no interior das quais se destacavam os nomes de Alfarabi, Avicena, Avempace, Abubaker e Averroés, os três últimos já na Espanha -- dedicaram-se inicialmente a debates de questões como os atributos divinos e os conflitos entre a predestinação e o livre-arbítrio. Contribuíram consideravelmente para a concretização de uma reflexão filosófica que já se poderia dizer autônoma, cujo expoente supremo foi Alkindi, que viveu no século IX. Toda essa estratificação orgânica da filosofia árabe tornou-se possível, em grande parte, graças à transmissão ao universo muçulmano de consideráveis vertentes dos sistemas gregos, sobretudo o aristotelismo e o neoplatonismo, o que se deve à versão síria do helenismo, à atividade filosófico-religiosa dos nestorianos, ao misticismo dos teólogos monofisistas egípcios, e finalmente, às traduções muçulmanas das versões sírias dos textos gregos.

2.7. De Avicena e Algazali

Herdeiro das tradições aristotélico-platônicas de Alkindi e, principalmente, de Alfarabi, Avicena foi o mais ilustre dentre todos os muçulmanos orientais. Segundo ele, o conhecimento forma-se a partir da realidade dos objetos conhecidos, desde a consciência dos princípios primordiais até a revelação escatológica, passando pelos princípios universais ou ideais. Sua sistematização da especulação interior é de capital importância para a filosofia escolástica, que absorveu de Avicena pelo menos três noções básicas: a da existência enquanto acidente que se associa à essência; a que se relaciona ao conceito da unidade do intelecto agente, constituída à custa da ascensão da potência no ato do entendimento; e a da distinção entre a essência e a existência nos seres criados, equivalentes à união destes em Deus. Além da contribuição de ordem metafísica, o avicenismo proporcionou ainda significativas modificações no campo da lógica, em que conciliou diversos aspectos dos modelos aristotélicos e estóicos.

Como os predecessores, Avicena tentou harmonizar, em suas várias obras, as formas abstratas da filosofia com as tradições religiosas do islamismo. Tal pretensão, porém, falhou em muitos pontos, o que deu origem às críticas movidas contra ele por Algazali, cujo ceticismo racionalista, particularmente visível em sua Tahafut al-falasifa (Autodestruição dos filósofos), opõe-se tanto ao aristotelismo avicenista quanto ao neoplatonismo dos demais filósofos árabes. Em outras palavras, Algazali não admite racionalização helenizante das crenças religiosas. Seu Deus é o Deus do homem religioso, e não o do intelectualismo com vicenista.




2.8. Filosofia árabe na Espanha

Paralelamente às doutrinas desenvolvidas por Avicena e Algazali, destacam-se aquelas que, a partir do século XI, foram disseminadas pelos pensadores muçulmanos na Espanha, onde sobressai o nome de Averroés, o maior dentre todos os filósofos árabes. Antes dele, distinguiram-se o filósofo judeu Avicebron, Abubaker (autor de um curioso romance filosófico) e, sobretudo, Avempace, que descreveu o itinerário seguido pelo homem para reunir-se ao intelecto agente, substância una e comum a todos os entendimentos possíveis. É essa, ainda que obscuramente expressa, a doutrina da unidade do intelecto, cujo maior nome foi Averroés.

A obra de Averroés -- que, como seus predecessores, procurou conciliar filosofia e dogma -- representa a maturidade e a culminância da tradição aristotélica no pensamento muçulmano da Idade Média latina. Esse trabalho teve grande influência sobre a escolástica. Em essência, o averroísmo sustentava a eternidade do mundo, que, por haver sido criado por Deus, não tinha na eternidade uma contradição. Esse mundo criado e eterno teria surgido por emanação do primeiro princípio criador, mas sua eternidade exige também a eternidade da matéria, na qual subsistiriam, desde sempre e enquanto possibilidades, as formas extraídas por Deus para formar as coisas, e não introduzidas na matéria. A essa eternidade da matéria reagiram Tomás de Aquino e os antiaverroístas. A doutrina de Averroés, no entanto, iria marcar ainda três outros momentos históricos: no princípio do século  XIII o averroísmo latino de Siger de Brabante), no final desse mesmo século (por meio de Duns Scotus, Pietro d'Abano, Marsílio de Pádua e outros) e na segunda metade do século XV (com os averroístas da Universidade de Pádua). Ao século XV pertence também o último valor expressivo da filosofia árabe, Aben-jaldun, de tendência neoplatônica.



3 - GRANDES MOVIMENTOS FILOSÓFICOS

3.1. Atomismo

Entre as teorias dos filósofos gregos sobre a composição da matéria, o atomismo foi aquela cujas intuições mais se aproximaram das modernas concepções científicas.

Atomismo, no sentido lato, é qualquer doutrina que explique fenômenos complexos em termos de partículas indivisíveis. Enquanto as chamadas teorias holísticas explicam as partes em relação ao todo, o atomismo se apresenta como uma teoria analítica, pois considera as formas observáveis na natureza como um agregado de entidades menores. Os objetos e relações do mundo real diferem, pois, dos objetos do mundo que conhecemos com os nossos sentidos.
3.1.1. Atomismo clássico

A teoria atomista foi desenvolvida no século V a.C. por Leucipo de Mileto e seu discípulo Demócrito de Abdera. Com extraordinária simplicidade e rigor, Demócrito conciliou as constantes mudanças postuladas por Heráclito com a unidade e imutabilidade do ser propostas por Parmênides.

Segundo Demócrito, o todo, a realidade, se compõe não só de partículas indivisíveis ou “átomos” de natureza idêntica, respeitando nisso o ente de Parmênides em sua unidade, mas também de vácuo, tese que entra em aberta contradição com a ontologia parmenídea. Ambos, ente e não-ente ou vácuo, existem desde a eternidade em mútua interação e, assim, deram origem ao movimento, o que justifica o pensamento de Heráclito. Os átomos por si só apresentam as propriedades de tamanho, forma, impenetrabilidade e movimento, dando lugar, por meio de choques entre si, a corpos visíveis. Além disso, ao contrário dos corpos macroscópicos, os átomos não podem interpenetrar-se nem dividir-se, sendo as mudanças observadas em certos fenômenos químicos e físicos atribuídas pelos atomistas gregos a associações e dissociações de átomos. Nesse sentido, o sabor salgado dos alimentos era explicado pela disposição irregular de átomos grandes e pontiagudos.

Filosoficamente, o atomismo de Demócrito pode ser considerado como o ápice da filosofia da natureza desenvolvida pelos pensadores jônios. O filósofo ateniense Epicuro, criador do epicurismo, entre os séculos IV e III a.C. e o poeta romano Lucrécio, dois séculos depois, enriqueceram o atomismo de Leucipo e Demócrito, atribuindo aos átomos a propriedade do peso e postulando sua divisão em “partes mínimas”, além de uma “espontaneidade interna”, no desvio ou declinação atômica que rompia a trajetória vertical do movimento   dos   átomos,   o   que,  em termos morais, explicava a liberdade do indivíduo.
Desenvolvimentos posteriores. A doutrina atomista teve pouca repercussão na Idade Média, devido à predominância das idéias de Platão e Aristóteles. No século XVII, porém, essa doutrina foi recuperada por diversos autores, como o francês Pierre Gassendi, em sua interpretação mecanicista da realidade física, e pelo alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, que lhe deu um sentido mais metafísico em sua obra Monadologia. Também os ingleses Robert Boyle e Isaac Newton aceitaram algumas idéias da doutrina atomística, ao sustentarem que as variações macroscópicas se deviam a mudanças ocorridas na escala submacroscópica. No século XX, com base no modelo da teoria atômica, o inglês Bertrand Russell postulou o chamado “atomismo lógico”, em que transpôs para a lógica os conceitos analíticos subjacentes ao atomismo clássico.

Atomismo e teoria atômica. Ao comparar-se o atomismo grego com a ciência atual, é necessário destacar que o primeiro, dada a unidade de filosofia e ciência, pretendia tanto solucionar os problemas da mutabilidade e pluralidade na natureza quanto encontrar explicações para fenômenos específicos. Já a moderna teoria atômica tem seu interesse centrado na relação entre as propriedades dos átomos e o comportamento exibido por eles nos diversos fenômenos em que estão envolvidos. Através do controle das reações nucleares, alcançou-se um novo nível, no qual os átomos são descritos como constituídos por partículas elementares, as quais podem transformar-se em energia e esta, por sua vez, em partículas.

3.2. Dialética

Desde os gregos até o fim da Idade Média, a dialética esteve identificada com a lógica. Ao longo da história, porém, enriqueceu muito seu significado, até tornar-se, com Hegel e Marx, uma das categorias mais importantes do pensamento filosófico.

Com a mesma raiz da palavra diálogo, dialética pode significar dualidade, mas também oposição de razões, atitudes ou argumentos. A idéia de oposição, antítese ou contradição, porém, embora essencial à noção de dialética, não esgota seu significado. Para os filósofos gregos, era essencialmente um método lógico de perguntas e respostas que permitia chegar à conclusão verdadeira. Modernamente, adquiriu sentidos e inflexões diferentes e tornou-se uma espécie de pedra filosofal do nosso tempo, uma maneira dinâmica de interpretar o mundo, os fatos históricos e econômicos e as próprias idéias.

Em Sócrates, a dialética inclui três momentos: a hipótese, definição prévia e provisória do que se pretende conhecer; a ironia, interrogatório que leva o interlocutor a reconhecer a ignorância do que pretendia saber; e a maiêutica, arte de dar à luz as idéias adormecidas no espírito do interlocutor. Podia ser utilizada como simples método de debate, ou para a avaliação sistemática de definições ou ainda para investigação e classificação das relações entre conceitos gerais e específicos.

Analisando os diálogos de Platão, firmados no proceder dialético, nota-se o limitado alcance do método, em que a conclusão é apenas uma repetição, termos diferentes, da proposição inicial. Para Aristóteles, a dialética platônica é um método menor quando confrontado com os da ciência.

Os pensadores renascentistas e racionalistas, de modo geral, não tiveram grande apreço pela dialética, que consideravam o método próprio das grandes summas teológicas escolásticas. No fim do século XVIII, Kant a utilizou nesse sentido, transferindo para o plano transcendental a eficácia da dialética.

Dialética hegeliana. Na primeira metade do século XIX, Hegel fez da dialética um fator essencial de seu sistema, mas não a concebeu como método ou uso da razão, e sim como um momento da própria realidade. Para ele, a dialética consiste na contínua tendência dos conceitos a se transformarem em sua própria negação, como resultado do conflito entre seus aspectos contraditórios internos, o que dá origem a outros conceitos.

Em Hegel, a dialética é, portanto, a estrutura do real que, entendido como processo, envolve três momentos: o da identidade, do ser em si (tese); o da negação, do ser para si (antítese); e o da negação da negação, do ser em si e para si (síntese). O momento propriamente dialético do processo é o da negação, implícito no anterior, da finitude do dado. O processo, porém, só é dialético porque não se detém na negação, que o imobilizaria. Pela negação da negação, alcança nova posição, ou positividade, que contém os momentos anteriores e os supera, na totalização ou síntese. Assim, a dialética se converte na manifestação da mudança contínua da realidade e do vir-a-ser do espírito    absoluto  --  eixo  do  sistema   hegeliano – na história.

Materialismo dialético. A idéia de dialética é central também na teoria de Marx que, diferentemente de Hegel, não a vê como uma dinâmica especulativa, traduzida no âmbito das idéias ou conceitos, mas como instrumento que permite a compreensão adequada dos fenômenos históricos, sociais e econômicos reais. Dando conteúdo concreto à formulação abstrata de Hegel, Marx entende a contradição como mola do processo histórico, tensão que o propulsiona e o faz progredir, em constante mudança e transição.

3.3. Empirismo

Na história do pensamento, o racionalismo fundou-se sobre a crença na capacidade do intelecto humano para compreender a realidade. Incorreu, todavia, em excessos metafísicos que fizeram dele um sistema filosófico fechado. Diante disso, surgiria na Inglaterra o empirismo, segundo o qual nenhuma certeza é possível, nenhuma verdade é absoluta, já que não existem idéias inatas e o pensamento só existe como fruto da experiência sensível.

Empirismo é a doutrina que reconhece a experiência como única fonte válida de conhecimento, em oposição à crença racionalista, que se baseia, em grande medida, na razão. O empirismo deu início a uma nova e transcendental etapa na história da filosofia, tornando possível o surgimento da moderna metodologia científica. Do ponto de vista psicológico, identifica-se com “sensualismo” ou “sensismo”, pelo menos em seus representantes mais radicais. Comparado ao positivismo, designa principalmente o método, enquanto o positivismo designa a doutrina a que esse método conduz. Em termos estritamente gnosiológicos, o que o caracteriza e define é a afirmação de que a validade das proposições depende exclusivamente da experiência sensível. Na perspectiva metafísica, identifica-se o empirismo com a doutrina que nega qualquer outra espécie de realidade além da que se atinge pelos sentidos.

3.3.1. Caracterização

Nem sempre é fácil distinguir empirismo e ceticismo. Considerado o fato de que o empirismo não participa da dúvida universal, muitos entendem válida sua conceituação como forma expressiva de dogmatismo. Todavia a dificuldade de caracterizá-lo decorre do número elevado de suas ramificações. O fenomenismo de David Hume e o imaterialismo de George Berkeley são duas de suas ramificações mais significativas, às quais convém ainda acrescentar o próprio positivismo. Apesar dessas diversificações, alguns autores pretendem caracterizá-lo mediante seis afirmações básicas, algumas delas essencialmente expressivas de suas formas mais radicais. São elas:



1)não há idéias inatas, nem conceitos abstratos;
2)o conhecimento se reduz a impressões sensíveis e a idéias definidas como cópias enfraquecidas das impressões sensoriais;
3)as qualidades sensíveis são subjetivas;
4)as relações entre as idéias reduzem-se a associações;
5)5) os primeiros princípios, e em particular o da causalidade, reduzem-se a associações de idéias convertidas e generalizadas sob forma     de associações habituais;
6)o conhecimento é limitado aos fenômenos e toda a metafísica, conceituada em seus termos convencionais, é impossível.

3.3.2. Histórico

O empirismo revelou-se na filosofia grega sob a forma sensualista, citando-se como seus representantes Heráclito, Protágoras e Epicuro. Na Idade Média seu mais significativo adepto foi Guilherme de Occam; expressou-se então por meio do nominalismo, cuja tese central é a não-existência de conceitos abstratos e universais, mas apenas de termos ou nomes cujo sentido seria o de designar indivíduos revelados pela experiência.

O empirismo moderno tem como seus principais representantes John Locke, Thomas Hobbes, George Berkeley e David Hume. Mas não se esgota aí o movimento. Sem dúvida, Jeremy Bentham, John Stuart Mill (em que o empirismo se converte em associacionismo) e Herbert Spencer podem ser citados como figuras representativas do fenomenismo nos domínios da ética, da lógica e da filosofia da natureza.

Esse empirismo enfrentou uma série de dificuldades, sendo a principal e mais profunda a que Immanuel Kant reconheceu, ao proceder, em sua Kritik der reinem Vernunft (1781; Crítica da razão pura), à distinção entre a experiência enquanto passo inicial do conhecimento e enquanto dado absoluto do conhecimento.

O significado do empirismo pode ser examinado considerando a validade de suas afirmações centrais. Tais afirmações são:

1)a rejeição da tese das idéias inatas;
2)a negação das idéias abstratas;
3)a rejeição do princípio da causalidade e, por decorrência e generalização, dos primeiros princípios da razão. A argumentação contra o inatismo foi esgotada por Locke. Negadas as idéias inatas enquanto idéias explicitadas, elas não poderiam deixar de estar presentes nas crianças e nos selvagens. A possibilidade de sua preexistência, meramente virtualizada ou implícita, desde logo é prejudicada, por se revelar contraditória com a conceituação da consciência tal como a formulou Descartes e tal como a admitiu Locke. A argumentação contra a validade da teoria da abstração é da autoria de Berkeley. Hume considera-a definitiva e irrespondível.

Segundo Berkeley, não se poderia conceber isoladamente qualidades que não podem existir em separado, como cor e superfície. Nenhuma condição existe para se pensar em cor, senão em termos de extensão ou superfície; a vinculação de uma à outra é essencial. De resto esse foi um dos caminhos explorados por Edmund Husserl, em função da técnica das variações imaginárias, para atingir o reino das essências. Ainda segundo Berkeley, qualquer representação será individual. Não se representa o homem, mas Pedro ou José. O triângulo conceituado nunca deixará de ser isósceles ou escaleno.

A crítica ao princípio da causalidade foi feita por Hume e constitui um dos pontos centrais de sua contribuição à epistemologia. A causalidade, entendida como poder de determinação e como relação necessária, é recusada. Nenhuma fundamentação sensorial se lhe poderia oferecer. Apenas se admitem seqüências de eventos reforçadas em termos de hábitos. Aceita e ampliada sua validade, a crítica invalida todos os chamados primeiros princípios. Precisamente assim procederam Stuart Mill, Spencer e, mais modernamente, L. Rougier, Charles Serrus e todo o Círculo de Viena.

3.4. Epicurismo

Os princípios enunciados por Epicuro e praticados pela comunidade epicurista resumem-se em evitar a dor e procurar os prazeres moderados, para alcançar a sabedoria e a felicidade. Cultivar a amizade, satisfazer as necessidades imediatas, manter-se longe da vida pública e rejeitar o medo da morte e dos deuses são algumas das fórmulas práticas recomendadas por Epicuro para atingir a ataraxia, estado que consiste em conservar o espírito imperturbável diante das vicissitudes da vida.

Epicuro nasceu na ilha grega de Samos, no ano 341 a.C., e desde muito jovem interessou-se pela filosofia. Assistiu às lições do filósofo platônico Pânfilo, em Samos, e às de Nausífanes, discípulo de Demócrito, em Teos. Aos 18 anos viajou para Atenas, onde provavelmente ouviu os ensinamentos de Xenócrates, sucessor de Platão na Academia. Após diversas viagens, ensinou em Mitilene e em Lâmpsaco e amadureceu suas concepções filosóficas. Em 306 a.C. voltou a Atenas e comprou uma propriedade que se tornou conhecida como Jardim, onde formou uma comunidade em que conviveu com amigos e discípulos, entre os quais Metrodoro, Polieno e a hetaira Temista, até o fim de seus dias.


Segundo Diógenes Laércio, principal fonte de informações sobre Epicuro, o mestre desenvolveu sua filosofia em mais de 300 volumes, mas esse legado escrito se perdeu. Epicuro elaborou estudos sobre física, astronomia, meteorologia, psicologia, teologia e ética, mas do que escreveu só se conhecem três cartas e uma coleção de sentenças morais e aforismos. A física epicurista inspirou-se na doutrina de Demócrito e propõe um universo, infinito e vazio, que contém corpos constituídos de átomos, elementos indivisíveis que se acham em constante movimento. Contrapõe ao determinismo de Demócrito a tese segundo a qual esses átomos experimentam em seu movimento um desvio (clinamen) espontâneo, que explica a maior ou menor densidade da matéria que forma os corpos a partir das colisões e rejeições entre os átomos. Segundo Epicuro, a alma é uma entidade física, distribuída por todo o corpo. Quando o indivíduo morre, ela se desintegra nos átomos que a constituem. A percepção sensorial, por meio da alma, é a única fonte de conhecimento e, por isso, os epicuristas recomendavam o estudo da natureza para alcançar a sabedoria.

Para chegar à ataraxia, o homem deve perder o medo da morte. Como corpo e alma são entidades materiais, não existem sensações boas ou más depois da morte; assim, o temor da morte não se justifica. Epicuro aceitava a existência dos deuses, mas acreditava que eles estavam muito afastados do mundo humano para preocupar-se com este. Logo, o homem não tem porque temer os deuses, embora possa imitar sua existência serena e beatífica.
De seus estudos científicos, Epicuro derivou uma filosofia essencialmente moral. À semelhança de outras correntes filosóficas da época, como o estoicismo e o ceticismo, suas concepções vieram ao encontro das necessidades espirituais de seus contemporâneos, preocupados com a desintegração da polis (cidade) grega. O prazer sensorial converteu-se na única via de acesso à ataraxia. Esse prazer, porém, não consiste numa busca ativa da sensualidade e do gozo corporal desenfreado, como interpretaram erroneamente outras escolas filosóficas e também o cristianismo, mas baseia-se no afastamento das dores físicas e das perturbações da alma. O maior prazer, segundo Epicuro, é comer quando se tem fome e beber quando se tem sede. O “tetrafármaco”, receita do mestre para a vida tranqüila, tem o seguinte teor: “O bem é fácil de conseguir, o mal é fácil de suportar, a morte não deve ser temida, os deuses não são temíveis.”

No ano 270 a.C., Epicuro morreu e tornou-se objeto de culto para os epicuristas, o que contribuiu para aumentar a coesão da seita e para conservar e propagar a doutrina. O epicurismo foi a primeira filosofia grega difundida em Roma, não apenas entre os humildes, mas também entre figuras importantes como Pisão, Cássio, Pompônio Ático e outros. O epicurismo romano contou com autores como Lucrécio e se manteve vivo até o princípio do século IV da era cristã, como poderoso rival do cristianismo.
3.5. Epistemologia

As questões relativas à possibilidade e à validade do conhecimento, cruciais na filosofia de todos os tempos, ganharam renovado interesse na sociedade moderna, voltada para o saber científico e tecnológico. Quanto maior a importância da ciência, maior a necessidade de dotá-la de sólidos fundamentos teóricos e critérios de verdade.
Epistemologia, gnosiologia ou teoria do conhecimento é a parte da filosofia cujo objeto é o estudo reflexivo e crítico da origem, natureza, limites e validade do conhecimento humano. A reflexão epistemológica incide, pois, sobre duas áreas principais: a natureza ou essência do conhecimento e a questão de suas possibilidades ou seu valor.

3.5.1. O problema do conhecimento

Os filósofos antigos e medievais abordaram em muitas ocasiões e de formas diversas o problema do conhecimento, mas foi a partir dos racionalistas e empiristas que o tema ganhou importância no pensamento filosófico. Conhecimento é o processo que ocorre quando um sujeito (o sujeito que conhece) apreende um objeto (o objeto do conhecimento). Esses dois pólos, sujeito e objeto, estão sempre presentes na relação de conhecimento. O papel que se atribui a um ou outro varia substancialmente, conforme a posição filosófica a partir da qual se considera essa relação. Assim, enquanto os filósofos realistas admitem a primazia do objeto, ou seja, sua existência independente    do    sujeito,    os    filósofos    idealistas defendem a primazia do sujeito, isto é, o objeto só existe no entendimento do sujeito. Em alguns casos, o subjetivismo transforma-se num solipsismo, isto é, na afirmação da impossibilidade do sujeito sair de si para poder conhecer o objeto. O sujeito só pode apreender as propriedades do objeto ao se transcender, ou seja, sair de si mesmo. O objeto, pelo contrário, permanece em sua condição e não se altera, não é modificado pelo sujeito. É este quem sofre modificação pelo objeto, modificação que é o próprio ato do conhecimento. Se o sujeito representa para si o objeto tal como é, o conhecimento será verdadeiro. No caso contrário, o sujeito terá um conhecimento falso do objeto.

3.5.2. Formas de conhecimento

Existem duas formas básicas de conhecimento: o sensível e o inteligível. O primeiro é o conhecimento que se adquire por meio dos sentidos e atinge o objeto em sua materialidade e individualidade. O conhecimento inteligível, ao qual se chega pelos mecanismos da razão, atinge tipos gerais e leis necessárias e não o individual e concreto. Alguns pensadores admitem a intuição como forma de apreensão imediata do objeto. Nessa linha, sobretudo a partir da obra do filósofo alemão Immanuel Kant, fala-se de conhecimento a priori, isto é, o conhecimento que não tem origem na experiência, e de conhecimento a posteriori, que procede da experiência.

3.5.3. Doutrinas sobre o conhecimento

Diante da possibilidade do conhecimento, existem duas posições extremas e antagônicas: o ceticismo, que defende a impossibilidade de conhecer o real, e o dogmatismo, que sustenta que em todos os casos é possível conhecer as coisas tais como são. Entre essas posições extremas encontram-se os céticos moderados e dogmáticos moderados. Os céticos moderados afirmam a existência de limites ao conhecimento, impostos pela constituição psicológica do sujeito e pelos condicionamentos de seu meio, o que os leva a defender ocasionalmente posições probabilistas, fundamentadas na dúvida. Os dogmáticos moderados defendem a possibilidade do conhecimento, desde que se cumpram algumas condições.

Quanto aos fundamentos do saber, confrontam-se as posições empirista e a racionalista. Para os filósofos de orientação empirista, a base do conhecimento se encontra na realidade sensível. No extremo oposto, os racionalistas defendem o caráter real das entidades conceituais. Modernamente, o racionalismo identifica realidade e racionalidade, o que elimina toda idéia que subordine o saber à experiência sensível.

O primeiro grande filósofo a abordar o estudo do conhecimento de maneira sistemática foi o francês René Descartes, no século XVII. Descartes tencionou descobrir um fundamento do conhecimento independente de limites e hipóteses. Para ele, conhecer é partir de uma proposição evidente, que se apóia numa intuição primária. Formulou tal proposição na célebre sentença “penso, logo existo”.

Kant negou que a realidade possa ser explicada somente pelos conceitos e se propôs determinar os limites e capacidades da razão. Embora existam efetivamente juízos sintéticos a priori, que são a condição necessária a toda compreensão da natureza, o âmbito do conhecimento limita-se, no pensamento de Kant, ao reino da experiência.

Para o empirismo, que influiu significativamente nas primeiras formulações de Kant, a realidade sensível é o fundamento para o conhecimento não só de todas as entidades que possam impressionar nossos sentidos, mas também das entidades não sensíveis, as idéias. Segundo John Locke, representante moderado do empirismo inglês, as impressões da sensibilidade formam apenas a base primária do conhecimento. David Hume e alguns autores neopositivistas posteriores consideraram, ao contrário, que as noções das ciências não são empíricas nem conceituais, mas formais e, portanto, vazias de conhecimento.
Para alguns empiristas, existem outras experiências além da sensível, como a experiência histórica, a experiência intelectual etc. Para os precursores dessa formulação, Friedrich Nietzsche e Wilhelm Dilthey, que dificilmente poderiam ser considerados empiristas, o termo “experiência” é entendido em sentido mais amplo. Dentro dessa linha do empirismo, os autores mais representativos são o alemão Martin Heidegger e o francês Jean-Paul Sartre, que defenderam posturas existencialistas; os americanos John Dewey e William James, de orientação pragmática; e o espanhol José Ortega y Gasset, que manteve a postura por ele chamada raciovitalismo, na qual   vida   e  razão constituem   os   dois    pólos     da concepção do mundo.

3.5.4. Conhecimento científico

A epistemologia foi entendida tradicionalmente como teoria do conhecimento em geral. No século XX, no entanto, os filósofos se interessaram principalmente por construir uma filosofia da ciência, na suposição de que, ao formular teorias adequadas ao conhecimento científico, poderiam avançar pela mesma via na solução de problemas gnosiológicos mais gerais.

A elaboração de uma epistemologia desse tipo constituiu a preocupação principal dos autores do Círculo de Viena, que foram o germe de todo o movimento do empirismo ou positivismo lógico. Esses pensadores tentaram construir um sistema unitário de saber e conhecimento, para o que se requeria a unificação da linguagem e da metodologia das diferentes ciências. A linguagem única deveria ser intersubjetiva -- o que exige a utilização de convenções formais e de uma semântica comum -- e universal, ou seja, qualquer proposição deveria poder ser traduzida para ela.

O alemão Rudolf Carnap e o austríaco Otto Neurath, pertencentes ao Círculo de Viena, consideraram que a física era essa linguagem, razão pela qual sua teoria denomina-se fisicalismo. O fisicalismo foi entendido mais adiante como um sistema de propriedades e relações observáveis das coisas, o que equivale a dizer que todos os enunciados sobre quaisquer fatos podem ser traduzidos em enunciados sobre estados ou processos do mundo físico. Evidentemente, existem  alguns conceitos, como essência ou enteléquia, que não podem ser transpostos para o mundo físico e, portanto, não são admissíveis na ciência. Ser real significa sempre ver-se numa relação com a realidade dada. As proposições metafísicas careceriam, assim, de significado.

É possível, no entanto, formular a hipótese da existência de uma realidade independente de nossa experiência e indicar critérios para sua transposição para a realidade sensível, já que uma afirmação de existência implica enunciados perceptivos. Não existe possibilidade de decisão a respeito de uma realidade ou idealidade absolutas. Isso seria, segundo palavras de Carnap, um pseudoproblema. Todas as formas epistemológicas da tradição filosófica inspiradas em posições metafísicas -- o idealismo e o realismo metafísico, o fenomenalismo, o solipsismo etc. -- estariam assim fora do âmbito do conhecimento empírico, uma vez que tentam responder a uma pergunta impossível.

3.5.5. Estética
O significado da beleza e a natureza da arte têm sido objeto da reflexão de numerosos autores desde as origens do pensamento filosófico, mas somente a partir do século XVIII, com a obra de Kant, a estética começou a configurar-se como disciplina filosófica independente.

Ciência da criação artística, do belo, ou filosofia da arte, a estética tem como temas principais a gênese da criação artística e da obra poética, a análise da linguagem artística, a conceituação dos valores estéticos, as relações entre forma e conteúdo, a função da arte na vida humana e a influência da técnica na expressão artística. Os primeiros teóricos da estética foram os gregos, mas como “ciência do belo” a palavra aparece pela primeira vez no título da obra do filósofo alemão Alexander Gottlieb Baumgarten, Æesthetica (1750-1758). A partir dessa obra, o conceito de estética restringiu-se progressivamente até chegar a referir-se à reflexão e à pesquisa sobre os problemas da criação e da percepção estética.

3.5.6. Antiguidade clássica

A arte, objeto mais geral da estética, tem sido considerada de maneira distinta segundo as épocas e os filósofos que dela se ocuparam. Na antiguidade, o problema do belo foi tratado por Platão, Aristóteles e Plotino. No diálogo Hípias maior, Platão procura definir o belo em si, a idéia geral ou universal da beleza. No Banquete e no Fedro, o problema da beleza é proposto em função do problema do amor. Por meio de imagens sensíveis, da cópia ou imitação da Idéia, e no delírio erótico, somos possuídos pelo deus, o que leva à reminiscência e à visão da realidade absoluta da beleza inteligível.

Na República, Platão sacrifica a estética à ética: critica os poetas que atribuem aos deuses fraquezas e paixões próprias dos mortais e acrescenta a essa crítica outra de ordem metafísica: a arte não passa de imitação da aparência, ou seja, é cópia de um objeto sensível, que, por sua vez, já é cópia, e imperfeita, da Idéia. Assim, a arte produz apenas a ilusão da realidade.

Nas reflexões de Aristóteles sobre a arte (imitação da natureza e da vida, mimesis), dominam as idéias de limite,   ordem  e simetria. Sua   Poética   aplica   esses princípios à poesia, à comédia, à epopéia e afirma que “o Belo tem por condição certa a grandeza e a ordem”. Plotino, seguindo a inspiração platônica, indaga nas Enéadas se a beleza dos seres consiste na simetria e na medida, pois tais critérios convêm apenas à beleza física, plástica, indevidamente confundida com a beleza intelectual e moral. O próprio ser físico, sensível, só é belo na medida que é formado por uma idéia que ordena e combina as múltiplas partes de que o ser é feito.

3.6. Kant
Na Crítica do juízo (ou da faculdade de julgar), que examina os juízos estéticos, ao referir-se aos objetos belos da natureza e da arte, Kant concebe o juízo estético como resultado do livre jogo do intelecto e da imaginação e não como produto do intelecto, ou seja, da capacidade humana de formar conceitos, nem como produto de intuição sensível. O juízo estético provém do prazer que se alcança no objeto como tal. Exprime uma satisfação diferente daquela que é proporcionada pelo agradável, pelo bem e pelo útil.

O belo, diz Kant, “é o que agrada universalmente, sem relação com qualquer conceito”. A satisfação só é estética, porém, quando gratuita e desligada de qualquer fim subjetivo (interesse) ou objetivo (conceito). O belo existe enquanto fim em si mesmo: agrada pela forma, mas não depende da atração sensível nem do conceito de utilidade ou de perfeição. No juízo estético verifica-se o acordo, a harmonia ou a síntese entre a sensibilidade e a inteligência, o particular e o geral.
O   prazer   estético  é   universalizável, porque as faculdades que implica estão presentes em todos os espíritos. Esse senso comum estético é a condição necessária da comunicabilidade universal do conhecimento, que deve ser presumida em toda lógica e em todo princípio de conhecimento.

Quanto às origens da arte, Kant diz que a imaginação é compelida a criar (causalidade livre) o que não encontra na natureza. A arte é, pois, a produção da beleza não pela necessidade natural, mas pela liberdade humana. Kant propõe uma classificação das “belas-artes” em artes da palavra (eloqüência e poesia), figurativas (escultura, arquitetura e pintura), e as que produzem um “belo jogo de sensações”, como a música. Todas se encontram na arte dramática e, de modo especial, na ópera.

3.7. Hegel

O objeto da estética, segundo Hegel, é o belo artístico, criado pelo homem. A raiz da arte está na necessidade que tem o homem de objetivar seu espírito, transformando o mundo e se transformando. Não se trata de imitar a natureza, mas de transformá-la, a fim de que, pela arte, possa o homem exprimir a consciência que tem de si mesmo. O valor ou o significado da arte é proporcional ao grau de adequação entre a idéia e a forma, proporção que  permite a divisão e classificação das artes. Sua evolução consiste na sucessão das formas nas quais o homem exprime suas idéias a respeito de Deus, do mundo e de si próprio.

As diferentes formas de arte correspondem às diferentes  maneiras  de  apreender e conceber a idéia e às diversas modalidades de incorporação do conceito à realidade. A propósito, Hegel distingue três dessas modalidades, a que correspondem, metafísica e historicamente, as três formas fundamentais da arte: arte simbólica, arte clássica e arte romântica. Para Hegel, a história da arte, do ponto de vista da filosofia, mostra que a arte simbólica está à procura do ideal, a arte clássica o atinge e a romântica o ultrapassa.

A evolução da arte reproduz a dialética da idéia infinita, que se nega ou aliena no finito, para negar a negação na síntese do finito e do infinito. A esse processo correspondem graus crescentes de interiorização do espírito, desde a arquitetura, arte do espaço vazio, mero receptáculo do divino, até a poesia, arte puramente interior ou subjetiva.

3.8. Benedetto Croce

Os princípios estéticos de Hegel, desprezados na Alemanha durante toda a segunda metade do século XIX, foram preservados na Itália por Francesco De Sanctis. Seu sucessor é Croce, cuja estética, baseada no conceito da expressão individual, exerceu profunda influência no mundo inteiro. Segundo Croce, qualquer ato artístico é meio de expressão e esta é a origem do lirismo. Só enquanto lirismo as obras de arte são arte e têm valor estético. Uma das conseqüências dessa estética como ciência da expressão é a abolição das fronteiras entre todas as artes e entre todos os gêneros literários.

3.9. Marxismo

A estética marxista, apenas esboçada na obra de Marx e Engels, é tributária da estética hegeliana, em que encontra sua justificação, e parece ter achado sua formulação mais completa na obra do dramaturgo e encenador Bertolt Brecht. A tese do “distanciamento” (Entfremdung), de Brecht, implica uma ruptura com a concepção clássica da arte como catarse. O espectador toma consciência dos problemas que lhe são apresentados na cena e é convocado a decidir e optar, colaborando na tarefa de libertação do homem: seria esta a razão de ser da obra de arte.

Os filósofos do Instituto de Pesquisas Sociais, mais conhecido como Escola de Frankfurt, constituíram o núcleo de uma linha original de pensamento estético de inspiração marxista, desenvolvido principalmente por Walter Benjamin e Theodor Adorno. Benjamin analisou o papel da obra de arte na época da reprodução mecânica e Adorno formulou o conceito de “indústria cultural” para designar o tratamento de mercadoria aplicado aos bens culturais na sociedade contemporânea.

3.10. Estoicismo

A necessidade de um guia moral na época de transição da Grécia clássica para a helênica explica por que o estoicismo ganhou rapidamente adeptos no mundo antigo e também porque renasceu todas as vezes que os valores de uma sociedade entraram em crise profunda.

O estoicismo foi criado pelo cipriota Zenão de Cício por volta do ano 300 a.C. O termo tem origem em Stoà poikilé, espécie de pórtico adornado com quadros de várias cores, onde Zenão se reunia com seus discípulos. Cleantes e Crisipo, entre os discípulos oriundos da Anatólia, tiveram papel relevante na escola estóica.

Os estóicos se vangloriavam da coerência de seu sistema filosófico. Afirmavam que o universo pode ser reduzido a uma explicação racional e que ele próprio é uma estrutura racionalmente organizada. A capacidade do homem de pensar, projetar e falar (logos) está plenamente incorporada ao universo. A natureza cósmica -- ou Deus, pois os termos são sinônimos para o estoicismo -- e o homem se relacionam um com o outro, intimamente, como agentes racionais. O homem pode alcançar a sabedoria se harmonizar sua racionalidade com a natureza. Lógica e filosofia natural estão, portanto, em íntima e essencial relação. Na história do estoicismo, apontam-se três períodos básicos: antigo, helenístico-romano e imperial romano.

3.10.1. Período antigo

A doutrina ética, como forma de ajudar o indivíduo a aceitar a adversidade, representou o principal apelo do estoicismo nesse período. O homem deve viver de acordo com a razão e ser indiferente a desejos e paixões. A verdadeira felicidade não está no sucesso material, mas na busca da virtude. Alegrias e infortúnios devem ser igualmente aceitos, porque seguem o ritmo natural do universo. Os mais importantes filósofos desse período são Zenão, Cleantes e Crisipo.
Com assimilação de elementos ecléticos e adaptações adequadas, o estoicismo adquiriu uma nova função, como sistema ético sobre o qual a república romana pretendia assentar-se. Destacaram-se no período Panécio de Rodes, Posidônio de Apaméia e Cícero. O homem político, segundo Cícero, só atinge a virtude suprema se sua atuação estiver voltada para o bem de seu povo.

3.10.2. Período imperial romano

O império oferecia a pax romana, mas, ao mesmo tempo, o fastio e a dissolução dos princípios morais da sociedade. Musônio Rufo, Sêneca, Epicteto e Marco Aurélio criaram os alicerces teóricos que deveriam dignificar o poder imperial. Alguns preceitos de sua poderosa doutrina moral foram adotados pela igreja cristã.

3.11. Estruturalismo

A abordagem estruturalista dos fenômenos se baseia em duas relações principais de oposição: a primeira delas se dá entre o histórico e o atemporal; a outra, entre o voluntário e o contingente.

Corrente de pensamento que se caracteriza pela oposição à compartimentação do conhecimento em capítulos heterogêneos, o estruturalismo surgiu no começo do século XX e foi incorporado ao método de diversas disciplinas humanísticas, como a lingüística, sistemas. O antropólogo funcionalista Bronislaw Malinowski expressou com clareza a abordagem estruturalista da antropologia: uma cultura se estuda tal como é numa determinada época, e não segundo seu desenvolvimento ou sua evolução histórica. O funcionalismo foi decerto uma reação contra o evolucionismo e afirmava o primado da ação recíproca entre os diversos elementos e instituições de dada sociedade, mas o estruturalismo veio enfatizar ainda mais a concepção  de sociedade como todo indivisível.

Como método científico, o estruturalismo estuda seu objeto, trate-se de cultura, linguagem, psiquismo humano ou outro qualquer, como um sistema em que os elementos constituintes mantêm entre si relações estruturais. Ao tomar este ou aquele objeto, o estruturalismo se propõe transcender a organização primária dos fatos, observável na pesquisa, para descrever a hierarquia e os nexos existentes entre os elementos de cada nível, para depois chegar a um modelo teórico do objeto. A abordagem estruturalista  foi aplicada a várias disciplinas. Destacaram-se Ferdinand de Saussure e Leonard Bloomfield na lingüística; Claude Lévi-Strauss na antropologia; Jean Piaget na psicologia e Louis Althusser na filosofia.

O termo “estrutura”, do qual provém o conceito de estruturalismo, designa um conjunto de elementos solidários entre si, ou cujas partes são funções umas das outras. Cada um dos componentes se acha relacionado com os demais e com a totalidade. Daí pode-se dizer que uma estrutura se compõe mais propriamente de membros que de partes, é mais um todo que uma soma. Os membros desse todo se acham entrelaçados de tal forma que não existe independência  de uns em relação aos outros, mas antes uma interpenetração. Exemplos de estruturas seriam, pois, os organismos biológicos, as coletividades humanas, as formas do psiquismo, as configurações de objetos em determinado contexto etc.

O estruturalismo foi entendido também como o corpo teórico que marcou o início da decadência das ideologias nas ciências sociais, já que a abordagem estrutural excluiria a praxis (a ação, a prática), que o marxismo, por exemplo, estabelece como critério supremo de verdade. É a estrutura (do latim struere, construir) que explica os processos. Em contraposição, Althusser pretendeu conferir forma estrutural ao marxismo, afirmando que o pensamento é uma “produção”, espécie de “prática teórica” exercida não apenas por sujeitos individuais, mas na qual intervêm fatores sociais e históricos.

Em toda estrutura se distinguem três características básicas:

1)sistema ou totalidade;
2)leis de transformação que conservam ou enriquecem o sistema;
3)e  auto-regulação, pois as transformações se efetuam sem que na estrutura intervenham elementos exteriores. Uma vez descoberta a estrutura, deve ser possível sua “formalização”. Cabe ressaltar que a formalização é uma criação teórica e que a estrutura é anterior ao modelo teórico e independe dele.
Quanto ao caráter de totalidade que a estrutura reveste, todos os estruturalistas concordam em que as leis que afetam os elementos de um sistema não se reduzem a associações cumulativas, mas se formam por composição, isto é, conferem ao todo propriedades de conjunto distintas dos atributos dos elementos. As leis de composição das totalidades estruturadas são estruturantes por natureza e é precisamente essa atividade estruturante que assegura a existência de um sistema de transformações. Um sistema, mesmo do ponto de vista exclusivamente sincrônico (plano temporal concreto, em oposição ao enfoque diacrônico, ou estudo histórico), não é imutável, pois aceita ou rejeita inovações em função das necessidades impostas pelas uniões e oposições existentes no próprio sistema.

Entende-se a auto-regulação das estruturas como sua capacidade de ajustar-se a fim de garantir a conservação. Nesse sentido a estrutura se fecha sobre si mesma, embora possa integrar, como subestrutura, uma estrutura mais ampla. A modificação das fronteiras gerais não dá lugar à abolição das fronteiras já existentes, pois o que se produz é uma confederação e não uma anexação. As leis da subestrutura não sofrem alteração, mas se conservam, de modo que a mudança representa um enriquecimento.
3.12. Existencialismo

O existencialismo surgiu numa Europa dilacerada por interesses antagônicos, onde o homem se sentia ameaçado em sua individualidade e em sua realidade concreta. Daí sua ênfase na solidão do indivíduo, na impossibilidade de encontrar a verdade por meio de uma decisão intelectual e no caráter irremediavelmente pessoal e subjetivo da vida humana.

Denomina-se existencialismo uma série de doutrinas filosóficas que, mesmo diferindo radicalmente em muitos pontos, coincidem na idéia de que é a existência do ser humano, como ser livre, que define sua essência, e não a essência ou natureza humana que determina sua existência.

3.12.1. Existencialismo na filosofia

Embora represente uma corrente específica do pensamento moderno, o existencialismo não deixa de ser uma tendência que se faz sentir ao longo de toda a história da filosofia. Assim sucede, por exemplo, com o imperativo socrático “conhece-te a ti mesmo”; com a angustiada exclamação de Pascal, situando o homem entre o ser e o nada; ou com a formulação do idealista alemão Friedrich Wilhelm Joseph von Schelling, segundo o qual a existência humana não pode ser reduzida à razão.

Se Hegel abraça o conceito da necessidade incoercível, afirmando que a liberdade é a consciência da necessidade, o dinamarquês Soren Kierkegaard, profundamente religioso e considerado o pai do existencialismo, interpreta a existência em termos de possibilidade. A existência humana é, para todas as formas de existencialismo, a projeção do futuro sobre a base das possibilidades que o constituem.

Para alguns pensadores dessa corrente - os alemães Martin Heidegger e Karl Jaspers, por exemplo - as possibilidades existenciais, na medida em que ancoradas no passado, conduzem todo projeto de futuro para o passado. Para outros, como o francês Jean-Paul   Sartre, as possibilidades  de escolha  existencial são infinitas e equivalentes, e a opção entre elas é, pois, indiferente. Outros, enfim, como o italiano Nicola Abbagnano e o francês Maurice Merleau-Ponty, consideram que as possibilidades existenciais são limitadas pelas circunstâncias, mas nem determinam a escolha nem fazem com que ela seja indiferente. Sejam quais forem suas posições particulares, todos os existencialistas afirmam, porém, que a escolha entre as diferentes possibilidades implica riscos, renúncia e limitação, salvo o francês Gabriel Marcel, principal representante do existencialismo cristão, que acha possível a transcendência do homem mediante seu encontro com Deus na fé.


3.12.2. Traços fundamentais do existencialismo

Embora não seja possível dar uma definição precisa do existencialismo - pois não existe um existencialismo único - ainda assim há uma série de traços que ajudam a descrever a índole e o espírito desse movimento filosófico. O existencialismo introduz a experiência pessoal na reflexão filosófica. Opondo-se à tradição de que o filósofo deve manter certa distância entre ele próprio, como sujeito pensante, e o objeto que  examina, o existencialista submerge apaixonadamente no objeto que contempla, a ponto de tornar sua filosofia basicamente autobiográfica (Kierkegaard).

Os temas de reflexão do existencialista giram em torno do homem e da realidade humana (homem, liberdade, realidade individual, existência cotidiana). Heidegger, ao que parece, é o filósofo mais alheio a essa perspectiva, pois para ele o problema fundamental da filosofia é o ontológico, isto é, o problema do ser e, assim,  o  problema  do homem fica subordinado a esse problema. Ao descrever o existente que é o homem, Heidegger observa que sua essência consiste em existir, pois esta é a determinação fundamental do que ele chama Dasein (das in-der-Welt-Sein, “o estar-no-mundo”). O homem não é para os existencialistas um mero objeto. É um sujeito-no-mundo e aberto para este. Em termos sartrianos, o homem cria a si mesmo.

A liberdade é também um tema básico para os existencialistas. Mas esta não é para eles uma liberdade acadêmica, como pressuposto do ato moral, mas sim a liberdade que permite a escolha e, portanto, a realização do indivíduo. Na Europa oprimida pelo nazismo e pelas ditaduras totalitárias, o existencialismo significou a reafirmação da liberdade política e cultural do indivíduo. Historicamente milita a favor do existencialismo a dura batalha que travou contra a ditadura da razão formalizada, já antes denunciada por Max Weber.

Tema impossível de ser posto de lado, a morte é também objeto de atenção para os existencialistas. O homem vive para morrer; cada um morre só. Para Heidegger, a morte é a última possibilidade do homem; para Sartre, o fim de todas as possibilidades; para todos os existencialistas, a suprema realidade transcendente. O ser-para-a-morte é o verdadeiro destino e objetivo da existência humana.

O tempo transcorre unicamente entre o nascimento e a morte; é a experiência que o indivíduo tem de sua limitação, de sua finitude. Assim, seria uma extrapolação arbitrária representar o tempo que precede o começo da existência e continua correndo depois que esta acabou.

A consciência é sempre consciência de alguma coisa. O dado básico do eu é a intencionalidade da consciência. A consciência é do mundo, mas não se acha no mundo como as coisas. Se a consciência é consciência de algo, ela própria não pode ser esse algo. É inerente à consciência a negação da identidade entre consciência e algo. A consciência se aproxima do ser, pois é consciência dele, mas se reconhece ao mesmo tempo distanciada do ser. À distância entre o ser e a consciência Sartre chama “nada”.

3.13. Fenomenologia
O conhecimento da realidade essencial dos fenômenos e a possibilidade desse conhecimento foi preocupação constante da filosofia até princípios do século XX, quando a fenomenologia deixou de olhar para os elementos exteriores que cercam os fenômenos e passou a considerá-los em si mesmos, por seu reflexo na consciência, como única maneira de apreendê-los.

Fenomenologia é o estudo dos fenômenos em si mesmos, independentemente dos condicionamentos exteriores a eles, cuja finalidade é apreender sua essência, estrutura de sua significação. É também um método de redução, pelo qual o conhecimento factual e as suposições racionais sobre os fenômenos como objeto, e a experiência do eu, são postas de lado, para que a intuição pura da essência do fenômeno possa ser rigorosamente analisada. É o estudo dos fenômenos, distinto do estudo do ser, ou ontologia.

Na história da filosofia, a fenomenologia tem três significados especiais. Na segunda metade do século XVIII,    era    sinônimo   de   “teoria   das   aparências”, expressão cunhada pelo filósofo Jean-Henri Lambert para distinguir a aparência das coisas do que elas são em si mesmas. Com Hegel, em Phänomenologie des Geistes (1807; Fenomenologia do espírito), é uma espécie de lógica do conteúdo e uma introdução à filosofia, história das fases sucessivas, das aproximações e das oposições pelas quais o espírito se eleva da sensação individual à razão universal, ou, para usar sua fórmula: “é a ciência da experiência que faz a consciência”. Foi com Husserl que a palavra ganhou, nas primeiras décadas do século XX, o significado de que hoje se reveste, de estudo dos fenômenos em si mesmos, que visa à evidência primordial, e de denominação de um movimento que influiu de modo significativo no pensamento filosófico dessa época.

A fenomenologia husserliana é uma meditação sobre o conhecimento. Considera que aquilo que é dado à consciência é o fenômeno (objeto do conhecimento imediato). Esse fenômeno só aparece numa consciência; portanto, é a essa consciência que é preciso interrogar, deixando de lado tudo o que lhe é exterior. A consciência, para Husserl, só pode ser entendida como intencional, isto é, não está fechada em si mesma, mas define-se como uma certa maneira de perceber o mundo e seus objetos. Mostrar os diversos aspectos pelos quais a consciência percebe esses objetos e sob os quais eles lhe aparecem, o que a sua presença supõe, constitui o estudo e o objetivo essencial da fenomenologia.

Para Husserl, portanto, a tarefa da filosofia é a pesquisa, exame e descrição do fenômeno, como conteúdo da consciência. Trata-se de uma mudança radical de sentido na orientação filosófica, antes voltada para as coisas, para o mundo exterior, e que com ele passou a interessar-se pela consciência, pelo mundo interior. Assim, por exemplo, se alguém vê as folhas de uma palmeira serem agitadas pelo vento, essa experiência é, toda ela, um fenômeno interior, que se passa essencialmente dentro da consciência. Os objetos exteriores são apenas condições para que se crie a percepção, a vivência desse fenômeno interior. A fenomenologia se prende, por meio da atitude reflexiva, nesses fenômenos ou estados da consciência e prescinde da realidade exterior das coisas, ou como diz Husserl, coloca-se entre parênteses. É o que ele chama de epokhé, ou seja, o ato de liberar a atenção do exterior para que ela se detenha na análise da vivência ou experiência pura.

A fenomenologia é, portanto, uma descrição daquilo que se mostra por si mesmo, de acordo com o “princípio dos princípios”: toda intuição primordial é fonte legítima de conhecimento. Situa-se como anterior a toda crença e juízo e despreza todo e qualquer pressuposto: mundo natural, senso comum, proposição científica ou experiência psicológica.

Essa mudança de orientação teve grande importância para a filosofia, pois a eximiu de cuidar da explicação do mundo e das coisas. A ciência é que explica o mundo e seus aspectos acessíveis à nossa experiência. Ao voltar-se para o conteúdo ou para o fenômeno existente na consciência, a fenomenologia encontrou um objeto que a capacita a transformar-se em ciência autêntica, como pretendia seu fundador. Esse conteúdo é antes suscetível de descrição do que de medida. Fazer tal descrição é a tarefa dessa filosofia.

Os críticos da obra de Husserl dividem-se em dois grupos principais. De um lado estão os que, como os neokantianos, concordam em que a fenomenologia se realizou como perspectiva ontológica; do outro, os que sustentam que ela significou apenas uma tomada de posição epistemológica, como Nicolaio Hartman. Em outras palavras, os que admitem ser ela uma perspectiva do ser, e os que a consideram apenas como uma investigação do conhecer.
Em seus primeiros escritos, Husserl não põe em dúvida a existência dos objetos independentemente dos atos mentais. Mais tarde, introduz a noção problemática de uma redução transcendental fenomênica, mediante a qual se descobre o ego (o eu) transcendental, diferente do ego fenomênico da consciência ordinária. Em conseqüência, Husserl passa de um realismo primitivo a uma modalidade de idealismo kantiano. Sua influência foi muito profunda, em especial entre os existencialistas (Martin Heidegger, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty) que, apesar de se considerarem fenomenologistas, preocupavam-se mais com a ação do que com o conhecimento.

Em psicologia, fenomenologia é um método de descrição e análise desenvolvido a partir da fenomenologia filosófica, aplicado à percepção subjetiva dos fenômenos e à consciência, em especial nos campos da psicologia da Gestalt, análise existencial e psiquiátrica.

3.14. Idealismo

Na linguagem cotidiana, o termo idealismo se emprega para designar o apreço por valores e ideais.

Filosoficamente, no entanto, refere-se ao conjunto de doutrinas que, por caminhos diversos, afirmam a precedência da consciência sobre o ser, ou da realidade ideal sobre a realidade material.

Em sentido amplo, o idealismo constitui uma das duas correntes filosóficas básicas. Contrapõe-se ao materialismo, para o qual toda realidade tem sempre caráter material ou corporal. Seu traço característico é tomar como ponto de partida para a reflexão filosófica o “eu”, encarado sob o aspecto de alma, espírito ou mente. A maneira de entender tais conceitos determina diferentes correntes idealistas.
A teoria das idéias de Platão é historicamente o primeiro dos idealismos. Para ele, o ser em sua pureza e perfeição não está na realidade, que é o reino das aparências. Os objetos captados pelos sentidos são cópia imperfeita das idéias puras. A verdadeira realidade está no mundo das idéias, das formas inteligíveis, acessíveis apenas à razão.

O termo idealismo, na verdade, surgiu apenas no século XVII para designar o platonismo, seus derivados medievais -- doutrina dos universais -- e alguns aspectos das filosofias de Descartes e John Locke. Embora o primeiro fosse racionalista e o segundo empirista, ambos apontaram, em momentos de sua reflexão metodológica, a possibilidade de que o homem só pudesse conhecer “idéias”, objetos subjetivos e exclusivos da mente humana. Caberia, assim, pôr em dúvida a própria existência de um mundo sensível.

Para o idealista inglês George Berkeley, a única existência   dos   objetos   é   a   idéia  que se tem deles:  “existir é ser percebido”. As coisas só existem como objetos da consciência. A existência do mundo como realidade coerente e regular estaria garantida por Deus, mente suprema onde tudo se produz e ordena.

No idealismo transcendental de Kant, a experiência sensorial só se torna inteligível por meio de estruturas conceituais preexistentes no espírito humano. Assim, a realidade é apreendida por formas de sensibilidade, como as noções de espaço e tempo, e certas categorias universais do entendimento, como a unidade, a totalidade, a causalidade etc. A partir da filosofia de Kant, desenvolveu-se o idealismo metafísico alemão, em que Johann Gottlieb Fichte identificou o espírito universal com o eu, e Friedrich Schelling elaborou uma forma de idealismo próximo do panteísmo religioso.

Hegel formulou um sistema filosófico que representa uma síntese do idealismo alemão e é comumente chamada de idealismo absoluto. As formas de pensar seriam também as formas do ser: “o que é racional é real e o que é real, é racional”. O espírito se realiza a si mesmo, no mundo externo, num processo dialético de superação de contradições, integrado por três fases: tese, antítese ou negação, e síntese, ou negação da negação. Os sucessivos processos dialéticos conduziriam o espírito à perfeição.

Todas as doutrinas idealistas coincidem num postulado básico: a existência de uma realidade última -- quer se chame espírito, Deus ou energia vital -- que transcende o mundo físico e lhe dá sua razão de ser.

3.15. Marxismo

Fruto de décadas de colaboração entre Karl Marx e Friedrich Engels, o marxismo influenciou os mais diversos setores da atividade humana ao longo do século XX, desde a política e a prática sindical até a análise e interpretação de fatos sociais, morais, artísticos, históricos e econômicos, e se tornou doutrina oficial dos países de regime comunista.

Marxismo é o conjunto das idéias filosóficas, econômicas, políticas e sociais que Marx e Engels elaboraram e que mais tarde foram desenvolvidas por seguidores. Interpreta a vida social conforme a dinâmica da luta de classes e prevê a transformação das sociedades de acordo com as leis do desenvolvimento histórico de seu sistema produtivo.

Os pontos de partida do marxismo são a dialética de G. W. F. Hegel, a filosofia materialista de Ludwig Feuerbach e dos enciclopedistas franceses e as teorias econômicas dos ingleses Adam Smith e David Ricardo. Mais do que uma filosofia, o marxismo é a crítica radical da filosofia, principalmente do sistema filosófico idealista de Hegel. Enquanto para Hegel a realidade se faz filosofia, para Marx a filosofia precisa incidir sobre a realidade. O núcleo do pensamento de Marx é sua interpretação do homem, que começa com a necessidade humana. A história se inicia com o próprio homem que, na busca da satisfação de necessidades, luta contra a natureza. À medida que luta, o homem se descobre como ser produtivo e passa a ter consciência de si e do mundo. Percebe então que “a história é o processo de criação do homem pelo trabalho humano”.

As duas vertentes do marxismo são o materialismo dialético, para o qual a natureza, a vida e a consciência se constituem de matéria em movimento e evolução permanente, e o materialismo histórico, para o qual o fato econômico é base e causa determinante dos fenômenos históricos e sociais, inclusive as instituições jurídicas e políticas, a moralidade, a religião e as artes.
A teoria marxista desenvolve-se em quatro níveis de análise -- filosófico, econômico, político e sociológico -- em torno da idéia central de mudança. Em suas Thesen über Feuerbach (1845, publicadas em 1888; Teses sobre Feuerbach), Marx escreveu: “Até o momento, os filósofos apenas interpretaram o mundo; o fundamental agora é transformá-lo.” Para transformar o mundo é necessário vincular o pensamento à prática revolucionária. Interpretada por diversos seguidores, a teoria tornou-se uma ideologia que se estendeu a regiões de todo o mundo e foi acrescida de características nacionais. Surgiram assim versões como as dos partidos comunistas francês e italiano, o marxismo-leninismo na União Soviética, as experiências no leste europeu, o maoísmo na China e Albânia e as interpretações da Coréia do Norte, de Cuba e dos partidos únicos africanos, em que se mistura até com ritos tribais.

3.15.1. Materialismo dialético

De uma perspectiva idealista, Hegel, filósofo alemão do século XIX, englobava a natureza, a história e o espírito no processo dialético de movimento das idéias, determinado pela oposição de elementos contrários (tese e antítese) que progridem em direção a formas mais aperfeiçoadas (síntese). Assim, no devir da história, o processo dialético impulsiona o desenvolvimento da idéia absoluta pela sucessão de momentos de afirmação (tese), de negação (antítese) e de negação da negação (síntese).

Marx adotou a dialética hegeliana e substituiu o devir das idéias, ou do espírito humano, pelo progresso material e econômico. Em Zur Kritik der Politischen Ökonomie (1859; Contribuição à crítica da economia política), resume o que mais tarde foi chamado materialismo dialético: “Não é a consciência do homem que determina seu ser, mas o ser social que determina sua consciência”. Pelo método dialético, sustentou que o capitalismo industrial (afirmação) engendra o proletariado (negação) e essa contradição é superada, no futuro, pela negação da negação, isto é, pela sociedade sem classes.

Outra chave do marxismo está no pensamento do filósofo alemão Ludwig Feuerbach. Discípulo de Hegel, Feuerbach inverteu na dialética os lugares ocupados pela idéia e pela matéria e formulou a teoria da alienação do homem, entendendo Deus como ilusão humana ditada por necessidades da realidade material. Marx detectou certa inconsistência no materialismo de Feuerbach, pois este considerava o homem como ser puramente biológico. Tomando uma noção criada por Moses Hess, também hegeliano, Marx definiu o homem em sua relação com a natureza e a sociedade, isto é, em sua dimensão econômica e produtiva, e viu no estado, na propriedade e no capital a fonte da alienação humana. Para Marx, as relações materiais de produção de uma sociedade determinam a alienação política, religiosa e ideológica, como  conseqüências  inequívocas das condições de dominação econômica.
3.15.2. Materialismo histórico

Também chamado concepção materialista da história, o materialismo histórico é a aplicação do marxismo ao estudo da evolução histórica das sociedades humanas. Essa evolução se explica pela análise dos acontecimentos materiais, essencialmente econômicos e tecnológicos. Na atividade econômica e social, os homens estabelecem relações necessárias e independentes de sua vontade. São as relações de produção, que correspondem a um determinado grau de desenvolvimento das forças produtivas (trabalho humano, instrumentos, máquinas). O conjunto das relações de produção forma a infra-estrutura econômica da sociedade, base material sobre a qual se eleva uma superestrutura política, jurídica e ideológica, o que engloba as idéias morais, estéticas e religiosas. Assim, o modo de produção dos bens materiais condiciona a vida social, política e intelectual que, por sua vez, interage com a base material. Para contrabalançar o determinismo econômico da teoria, Marx afirmou a existência de uma constante interação e interdependência entre a infra-estrutura e a superestrutura, embora, em última instância, os fatores econômicos sejam os determinantes.

No curso de seu desenvolvimento, as forças produtivas da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes e estas convertem-se em obstáculos à continuidade do processo produtivo. Inicia-se então uma era de revolução social que afeta a fundo a estrutura ideológica, de modo que os homens adquirem consciência do conflito de que participam.

As relações capitalistas de produção seriam a forma final de antagonismo no processo histórico. O modo de produção do capitalismo industrial conduz de modo inevitável à superação da propriedade privada, não só pela rebelião dos oprimidos como pela própria evolução do sistema, em que a progressiva acumulação de capital determina a necessidade de novas relações de produção baseadas na propriedade coletiva dos meios de produção. Superado o regime de propriedade privada, o homem venceria a alienação econômica e, em seguida, todas as outras formas de alienação de si mesmo.

No decorrer do processo histórico, as relações econômicas evoluíram segundo uma contínua luta dialética entre os proprietários dos meios de produção e os trabalhadores espoliados e explorados. No primeiro capítulo do Manifest der Kommunistischen Partei (1848; Manifesto comunista), Marx e Engels afirmam que a “história de todas as sociedades do passado é a história da luta de classes”. Segundo o materialismo histórico, o comunismo primitivo seria a tese oposta à antítese expressa pelas sociedades de classe (escravistas, feudais e capitalistas). A sociedade sem classes, alcançada mediante a práxis (isto é, a teoria posta em prática) revolucionária, seria a síntese final das organizações sociais.
3.15.3. Crítica do sistema capitalista

Marx rejeitou o idealismo dos socialistas utópicos, sobretudo Charles Fourier e Henri de Saint-Simon, que criticaram o capitalismo de um ponto de vista humanitário e defenderam a mudança gradual para um regime social baseado na propriedade e no trabalho coletivos. Marx formulou então a doutrina do socialismo científico, em que a crítica à estrutura econômica do capitalismo permite reconhecer as leis dialéticas de sua evolução e decomposição.

Para Marx, o trabalho é a essência do homem, pois é o meio pelo qual ele se relaciona com a natureza e a transforma em bens a que se confere valor. A desqualificação moral do capitalismo ocorre por ser um modo de produção que converte a força de trabalho em mercadoria e, desse modo, aliena o trabalhador como ser humano.
Marx concordou com os economistas clássicos britânicos, para quem o trabalho é a medida de todas as coisas. A força de trabalho do operário, vendida ao capitalista, incorpora-se a um produto que se vende no mercado por um valor superior a seu custo de produção. A diferença entre o valor final do produto e o custo de produção constitui a mais-valia, o excedente ou valor acrescentado pelo trabalho. O custo de produção é a soma do valor dos meios de produção (maquinaria e matérias-primas) e do valor da força de trabalho, este expresso em bens indispensáveis à subsistência do operário e sua família. A mais-valia, portanto, converte-se em lucro para o capitalista.
Marx distingue dois tipos de mais-valia, a absoluta e a relativa, que se definem pela maneira como são aumentadas. A mais-valia absoluta aumenta proporcionalmente ao aumento do número de horas da jornada de trabalho, conservando-se constante o salário. O valor produzido pelo trabalho nesse tempo adicional corresponde à mais-valia absoluta. Assim, lucro do capital, isto é, a mais-valia absoluta, e sua acumulação. A mais-valia relativa aumenta com o aumento da produtividade, com a racionalização do processo produtivo e com o aperfeiçoamento tecnológico. O trabalhador passa a produzir mais no mesmo tempo de trabalho, e isso aumenta relativamente a mais-valia.

A obtenção de mais-valia conduz à acumulação do capital expressa na concentração fabril e empresarial e no progresso tecnológico incorporado à maquinaria das grandes indústrias. O uso de máquinas cada vez mais produtivas elimina periodicamente parte da força de trabalho. Os operários dispensados engrossam o “exército industrial de reserva” (os desempregados) em situação de concorrência que favorece a redução dos salários e a pauperização da classe operária.

A formação de cartéis e monopólios, em conseqüência da concentração de capital, diminui o número de capitalistas e provoca uma crise de superprodução, manifestação típica das contradições do capitalismo, já que, em busca de lucro máximo, o capitalista adota novos instrumentos de trabalho que geram produção maior do que o mercado é capaz de absorver. As crises periódicas fazem aumentar o desemprego, proletarizam as classes intermediárias e empobrecem a classe operária. O sistema capitalista desaparecerá em conseqüência das próprias contradições e da oposição entre o caráter coletivo da produção e o caráter privado da apropriação. A ação revolucionária dos oprimidos, ou seja, da classe operária, deve incidir sobre o sistema capitalista. A tomada do poder por essa classe implicaria a  instauração de um estado socialista transitório, a ditadura do proletariado, que se dissolveria após cumprir sua missão de organizar o sistema coletivista e liquidar as antigas classes sociais. Depois dessa fase se chegaria finalmente ao comunismo, sociedade sem classes e sem exploração do homem pelo homem.

3.15.4. Revisionismo e marxismo-leninismo
No final do século XIX, o marxismo passou a atrair cada vez mais o movimento operário mundial, embora o anarquismo e o pensamento social-cristão mantivessem sua influência. O desenvolvimento industrial em alguns países, porém, contribuiu para melhorar o padrão de vida da classe trabalhadora, ao contrário das previsões de Marx, e reforçou os sistemas políticos social-democratas.

Nas primeiras décadas do século XX, os alemães Karl Liebknecht e Rosa Luxemburgo ratificaram o caráter revolucionário do marxismo e adaptaram a doutrina às novas condições do capitalismo. Na mesma direção seguiu Lenin, personagem decisivo da revolução russa de 1917. Sua contribuição originou o marxismo-leninismo, com novas abordagens da doutrina e do movimento comunista, como a análise do imperialismo, a possibilidade da revolução em países não industrializados, a participação do campesinato na ação revolucionária e a organização do partido comunista como vanguarda da classe operária.
O marxismo-leninismo foi interpretado de maneiras diversas após a morte de Lenin. Nikolai Ivanovitch Bukharin preconizou uma concepção revisionista    e      Trotski    desenvolveu    os  aspectosquanto mais horas o operário trabalhar, maior será o revolucionários da doutrina. Stalin simplificou os postulados do marxismo-leninismo, formulou a teoria do socialismo em um só país, contra a tese trotskista, que preconizava a internacionalização da revolução, e defendeu a possibilidade de um desenvolvimento auto-suficiente da economia soviética, sem relação com o mundo capitalista.

A partir do marxismo-leninismo, o líder comunista chinês Mao Zedong elaborou uma doutrina original, o maoísmo, adaptada ao desenvolvimento da revolução na China e às características milenares da cultura chinesa: é maoísta, por exemplo, o princípio segundo o qual os estudantes jamais devem ser orientados para a competição, mas exclusivamente para a cooperação.
O marxismo teve teóricos de grande expressão no mundo das idéias, como Antonio Gramsci, György Lukács, Theodor W. Adorno, Karl Korsch e Louis Althusser. Depois da segunda guerra mundial, surgiram interpretações não dogmáticas do marxismo, com a  incorporação de filosofias como as de Edmund Husserl e Martin Heidegger e de idéias de teóricos de outras áreas, como Sigmund Freud. Economistas, historiadores antropólogos, sociólogos, psicólogos, estudiosos da moral e das artes, incorporaram a metodologia marxista sem necessariamente aderir à filosofia política e à prática revolucionária do marxismo.

A queda dos regimes comunistas nos países do leste europeu e a dissolução da União Soviética levaram ao questionamento dos postulados doutrinários marxistas. Permaneceram, porém, o respeito e a admiração pelo rigor científico, originalidade, coerência interna e abrangência da obra de Marx e Engels.

3.16. Materialismo

A crescente sofisticação do conhecimento levou o homem a duvidar da milenar explicação mágica do mundo e a tentar compreendê-lo com teorias que, baseadas na experiência objetiva, abrangessem desde a natureza e a origem da vida e do universo até a relação do próprio ser humano com essa realidade. Essas teorias dividiram-se de modo esquemático em duas grandes tendências: materialismo e idealismo.

Materialismo é toda concepção filosófica que aponta a matéria como substância primeira e última de qualquer ser, coisa ou fenômeno do universo. Para os materialistas, a única realidade é a matéria em movimento, que, por sua riqueza e complexidade, pode compor tanto a pedra quanto os extremamente variados reinos animal e vegetal, e produzir efeitos surpreendentes como a luz, o som, a emoção e a consciência. O materialismo contrapõe-se ao idealismo, cujo elemento primordial é a idéia, o pensamento ou o espírito.

3.16.1. Evolução histórica

Tales de Mileto e outros filósofos pré-socráticos, já no século VI a.C., argumentavam que a filosofia devia explicar os fenômenos pela observação da realidade e não pelos mitos religiosos. Todos os fenômenos da natureza consistiriam em transformações do mesmo princípio material, sem intervenção divina. Empédocles apontou a existência de quatro elementos substanciais: a terra, a água, o fogo e o ar.

A tradição materialista na filosofia ocidental, porém, começou com Demócrito, no século V a.C., que afirmou que tudo que existe compõe-se de átomos (partículas invisíveis de matéria) em constante movimento no espaço vazio. Esses átomos se associam ou se separam de acordo com seu formato. Conhecida como atomismo, a teoria explicou as mudanças nas coisas como conseqüência de mudanças na configuração de átomos imutáveis. A diversidade quantitativa dos átomos (forma, dimensão e ordem) determinaria os diferentes fenômenos da natureza.

Epicuro, o mais influente dos materialistas gregos, confirmou a teoria de Demócrito, mas atribuiu aos átomos a propriedade de se desviarem de suas rotas, o que explicaria o encontro entre eles. Com essa hipótese, Epicuro procurou demonstrar que a origem do movimento está na própria natureza, é inerente a ela e prescinde de intervenção divina.

Na sistematização que fez do conhecimento da época, Aristóteles pretendeu conciliar as vertentes materialista e idealista da filosofia grega. Seu pensamento representou um compromisso entre a ciência e a teologia a tal ponto que foi utilizado, no final da Idade Média, como instrumento de defesa da fé cristã.

3.16.2. Desenvolvimento posterior

Ao longo da Idade Média, o idealismo platônico e depois o aristotelismo dominaram o pensamento ocidental. Com o Renascimento, e sob a influência do progresso das ciências naturais e da técnica, o materialismo ressurgiu em suas diversas concepções. Nos séculos XVI e XVII, na Inglaterra, Francis Bacon defendeu o materialismo naturalista; Thomas Hobbes criou um sistema materialista baseado nas concepções de Descartes; e Locke investigou a origem, a essência e o alcance das idéias por meio das quais o conhecimento se constitui. Na França, Descartes lançou os fundamentos do materialismo mecanicista com sua teoria dualista, que separa radicalmente espírito e matéria. Na Itália, Tommaso Campanella e Giordano Bruno defenderam o pampsiquismo, segundo o qual toda matéria tem um ímpeto interior que adquire qualidade anímica ou consciente. A integração dos átomos em moléculas gigantes e matéria viva propicia o surgimento da memória e, no homem, a consciência.

A idéia atingiu plena maturidade com Spinoza, filósofo judeu-holandês que assegurou que matéria e alma constituem os aspectos externo e interno de uma mesma coisa, a natureza, que se confunde com Deus. No século XVIII, as teorias materialistas mecanicistas mais consistentes surgiram na França com os iluministas, sobretudo Condillac e Diderot. No século XIX, com os avanços científicos em diversas áreas, em particular a teoria evolucionista de Darwin, as concepções materialistas tiveram grande impulso. Destaca-se o epifenomenismo, defendido pelo britânico Thomas Huxley, que sustentou que os processos mentais prescindem de relevância causal e só os processos físicos dão causa a outros.

Em meados do século XX, Karl Popper, filósofo britânico de origem austríaca, distinguiu quatro tendências      materialistas    na   filosofia  ocidental:  o epifenomenismo de Huxley, a teoria da identidade, o pampsiquismo e o materialismo ou fisicalismo radical. A figura principal da teoria da identidade é o filósofo alemão Herbert Feigl, para quem os processos mentais não passam de processos físicos. O pampsiquismo espinozista foi retomado pelo britânico Conrad Hal Waddington e o alemão Berhard Rensch. O materialismo radical foi representado pelo americano Willard von Ormar Quine, que sustentou a inexistência dos processos conscientes e mentais. O problema da dualidade entre o corpo e o espírito desaparece, uma vez que só a matéria existe. Logo, no homem, só o corpo existe.

Na era contemporânea, o novo saber científico que inclui a teoria da relatividade e a mecânica ondulatória parecia ameaçar a base do materialismo, mas outras descobertas no domínio da bioquímica, da física e da psicologia fisiológica, assim como tecnologias, como a informática tornou mais plausíveis as concepções do materialismo e levaram ao ressurgimento do interesse em torno de suas teorias centrais. A física constatou, por exemplo, que a matéria é formada não de átomos, mas de elétrons, prótons, mésons e outras partículas subatômicas e que não há distinção entre matéria e energia. O fisicalismo, portanto, admite que matéria é tudo aquilo que a física afirma que existe.

O progresso na tecnologia de computadores, que substituem o homem em muitas atividades intelectuais rotineiras como o cálculo, renovou a discussão sobre a natureza da inteligência e levou a reiteradas tentativas de criar inteligência artificial, que substituiria a mente humana e provaria que, como o cérebro, ela se compõe de matéria.

3.16.3. Positivismo
Ao surgir no século XIX, quando as descobertas científicas e os avanços técnicos faziam crer que o homem podia dominar a natureza, o positivismo opôs às abstrações da teologia e da metafísica o método experimental e objetivo da ciência.

Ideologia e movimento filosófico fundado por Auguste Comte, o positivismo tem como base teórica os três pontos seguintes:

1)todo conhecimento do mundo material decorre dos dados “positivos” da experiência, e é somente a eles que o investigador deve ater-se;
2)existe um âmbito puramente formal, no qual se relacionam as idéias, que é o da lógica pura e da matemática; e
3)todo conhecimento dito “transcendente” -- metafísica, teologia e especulação acrítica -- que se situa além de qualquer possibilidade de verificação prática, deve ser descartado. A evolução posterior do positivismo passou por diversas etapas e reelaborações, entre as quais cabe destacar o positivismo crítico e o neopositivismo ou positivismo lógico, e exerceu influência notável no desenvolvimento da filosofia analítica em meados do século XX.

No aspecto crítico, como o positivismo repudia toda especulação em torno da natureza da realidade que afirme uma ordem transcendental não-suscetível de demonstração pelos dados da experiência, sua ética é secular e terrena, e coincide essencialmente com o utilitarismo britânico -- sobre o qual influiu de maneira decisiva -- que se pode resumir na célebre frase de Jeremy Bentham: “A maior felicidade possível para o maior número possível de pessoas.”

3.16.4. Positivismo de Comte

A doutrina filosófica do positivismo tem raízes ideológicas em diversos movimentos que tiveram lugar no século XVIII, como o empirismo radical de David Hume, que concedia primazia absoluta à experiência no processo do conhecimento, e o Iluminismo, com sua crença no progresso da humanidade por meio da razão. O positivismo é produto direto de sua época. Com a revolução industrial já plenamente realizada, em pleno florescimento das ciências experimentais, que conquistavam progressivamente mais e mais espaço, em detrimento da especulação racionalista, Comte tentou a síntese dos conhecimentos positivos de seu tempo. Era recente e estrondoso o triunfo da física, da química e de algumas idéias biológicas. Com intenção de reforma social, o pensamento de Comte pretendeu ser um comentário geral sobre os últimos resultados das ciências positivas.

Ao contrário do que afirmaram alguns divulgadores, Comte nunca se inclinou a favor de um empirismo radical. Pelo contrário, situava o positivismo entre o empirismo -- a pura experiência direta do fato -- e o racionalismo, que ele chamava também de misticismo. O saber científico depende tanto de dados empíricos como de elaboração racional. O real  não é dado diretamente, pela simples sensação, ou mera apreensão da realidade pelos sentidos, que precisam ser  complementados  por  ação do intelecto. O  espírito reage, reelabora os dados dos sentidos e os organiza segundo uma hipótese de trabalho e cria uma imagem de mundo formada por elementos empíricos e racionais.

No pensamento social de Comte manifesta-se a influência de seu mestre, Saint-Simon, teórico do socialismo utópico, que preconizava uma reforma da sociedade. Comte se propôs a dois objetivos básicos: a elaboração de uma sociologia -- disciplina criada por ele e à qual pensou dar o nome de “física social” -- sobre a base exclusiva do estudo científico dos dados da experiência, e a reorganização das ciências de acordo com o mesmo critério.
A doutrina de Comte, exposta no Cours de philosophie positive (1830-1842; Curso de filosofia positiva), baseou-se na chamada lei dos três estados ou etapas do desenvolvimento intelectual da humanidade. O primeiro estágio é o teológico, no qual o homem explica os fenômenos da natureza mediante o recurso a entes sobrenaturais ou divindades, e cuja fase superior é o monoteísmo. No segundo estágio, o metafísico, não se interpreta o mundo sensível em função de seres exteriores a ele, mas apela-se para forças ou conceitos imanentes e abstratos (formas, idéias, potências, princípios). Por último, no estado positivo, o homem se limita a descrever os fenômenos e a estabelecer “as relações constantes de semelhança e sucessão entre eles”. Nesse estágio, que é o da filosofia positiva, não se pretende achar as causas ou a essência das coisas, mas descobrir as leis que as regem, já que a filosofia está “destinada por sua natureza não a descobrir, mas a organizar”. O objetivo básico da filosofia positiva é, pois, a ordenação e a classificação das ciências. Comte estabeleceu uma pirâmide de seis ciências puras, na base da qual se encontrava a matemática -- única ciência que não pressupõe as demais -- seguida da astronomia, física, química, biologia e sociologia. Todas seriam regidas pelo mesmo método descritivo, e cada uma delas utilizaria os dados proporcionados pelas precedentes. Comte estabelecia assim o princípio da unidade da ciência.

No Discours sur l'ensemble du positivisme (1848; Discurso sobre o conjunto do positivismo), Comte incumbiu-se de relacionar os diversos sentidos da palavra “positivo”: relativo, orgânico, preciso, certo, útil, real. No mesmo ensaio, parte dessas características do positivo para chegar a uma significação moral e social mais ampla, de reorganização da sociedade, com predomínio do coração e dos sentimentos sobre a razão e a atividade, cujo ápice é a religião da humanidade. O positivismo contém assim uma teoria da ciência, uma doutrina de reforma social e uma religião.

Uma segunda fase na vida do criador da doutrina positivista inicia-se com o predomínio dos propósitos práticos em detrimento dos teóricos ou filosóficos, fase da qual é bem representativo o seu Système de politique positive (1851-1854; Sistema de política positiva). Constitui-se então a chamada “religião da humanidade”, com ídolos, novo fetichismo, sociolatria, sociocracia, sacerdotes, catecismo, tudo confessadamente muito próximo do catolicismo. Assim, o positivismo assume a condição de um credo baseado na ciência, que não exclui a abertura de templos e a prática de culto. Os aspectos religiosos do positivismo se encontram tratados em Le Cathécisme positiviste (1852; O catecismo positivista).

3.17. Ortodoxos e heterodoxos

Os adeptos do positivismo dividiram-se em dois grupos antagônicos: os ortodoxos, que acompanharam Comte em sua fase religiosa; e os heterodoxos, que se mantiveram fiéis somente à primeira fase, de cunho científico e filosófico. Na França, Émile Littré, autor de Fragments de philosophie positive et de sociologie contemporaine (1876; Fragmentos de filosofia positiva e sociologia contemporânea), líder dos heterodoxos, considerou a segunda fase de Comte como um retrocesso, que entrava em conflito com a primeira e a renegava. Pierre Laffitte, ortodoxo, foi o continuador da pregação e sacerdote máximo da religião da humanidade.

Embora muito criticadas porque excluíam elementos próprios da investigação científica, como o método hipotético-dedutivo, as teorias de Comte tiveram grande número de seguidores. Assim, por exemplo, o utilitarismo britânico, cujo principal representante foi John Stuart Mill, e o pragmatismo americano sofreram decisiva influência da doutrina positivista. Foi, entretanto, o chamado positivismo crítico, centrado na teoria da ciência, que inspirou o desenvolvimento posterior da doutrina.

3.18. Positivismo crítico e positivismo lógico

Com o nome de positivismo crítico se conhecem as teorias enunciadas pelo pensador alemão Richard

Avenarius, que chamou seu sistema de empiriocriticismo, e o austríaco Ernst Mach. Ambos sustentavam que todo conhecimento consiste unicamente na organização conceitual e na elaboração dos dados da experiência proporcionados pelos sentidos, isto é, pelas sensações. Negavam, assim, não só conceitos especulativos, como o de substância, mas também hipóteses científicas, como o espaço absoluto, postulado por Newton.

As leis do positivismo crítico, junto com as formulações lógicas de pensadores como o alemão Gottlob Frege, o britânico Bertrand Russell e o austríaco Ludwig Wittgenstein, autor do fundamental Tractatus logico-philosophicus, deram lugar ao positivismo lógico, também chamado neopositivismo. Seu núcleo fundamental foi o Círculo de Viena, integrado entre outros pelos alemães Moritz Schlick e Rudolf Carnap e o austríaco Otto Neurath, cujas teorias foram expressas no manifesto Wissenschaftliche Weltauffassung: Der Wiener Kreis (Concepção científica do mundo: o círculo de Viena). Nele sustentavam que a lógica, como ciência formal da representação simbólica, é autônoma em relação às ciências empíricas, e que só estas podiam proporcionar informações sobre a realidade. O objeto da análise filosófica seria estabelecer a verificação lógica das proposições da ciência e eliminar aquelas pseudoproposições com sentido aparente, mas baseadas em enunciados metafísicos não-demonstráveis. A validade de um enunciado não-contraditório e suscetível de verificação experimental seria objeto exclusivo das ciências empíricas.

O positivismo lógico foi duramente criticado por pensadores como o austríaco Karl Popper, que considerou que o critério positivo de verificação impedia a elaboração de hipóteses, fundamentais para a ciência. Muitas das idéias dos positivistas lógicos, entretanto, continuaram em discussão. Suas análises sobre o significado das proposições e as relações entre as ciências formais e as empíricas foram, de qualquer forma, fundamentais para a evolução posterior da filosofia analítica.




3.19. Positivismo no Brasil

A história do positivismo no Brasil tem importância especial para a evolução das idéias no país. Foi sob o patrocínio do positivismo que, em grande parte, se fez a preparação teórica da implantação da república. Vários dos mais destacados propagandistas republicanos eram positivistas e, nos primeiros anos que se seguiram à queda do império, ocuparam posição de relevo na administração pública. Foi importante a influência intelectual e política de Benjamin Constant, positivista e republicano. A divisa Ordem e Progresso, da bandeira nacional, inspirou-se no conceito elaborado por Comte de uma sociedade exemplar, que teria “o amor como princípio, a ordem como base e o progresso como fim”.

A ação do positivismo no Brasil lançou-se contra a posição filosófica de base espiritualista, então a única existente. Nesse combate, estava o positivismo ao lado do materialismo e do evolucionismo, que tinham lugar destacado entre os pensadores da época. A influência positivista, que foi preponderante nessa fase de renovação   das   idéias  filosóficas no Brasil, começou a estender-se, a princípio, por meio de brasileiros que estudaram na França, alguns discípulos do próprio Comte. Depois, alargou seu campo em virtude de teses que diversos professores defenderam em escolas superiores, como a de Luís Pereira Barreto, As três filosofias (1874-1876).

O centro principal de irradiação da doutrina foi a cidade de Recife, por intermédio da chamada “escola de Recife”, cujo iniciador, Tobias Barreto, tomaria posteriormente outros caminhos no domínio do pensamento. O mesmo ocorreu com outros dois vultos eminentes do grupo, Sílvio Romero e Clóvis Beviláqua. A conversão de Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, que desenvolveram grande atividade no setor do apostolado, foi importante para a expansão da doutrina no Rio de Janeiro. Nessa cidade foi instalada a igreja e o Apostolado Positivista no Brasil, em 1881. No Brasil, o positivismo passou de ciência a doutrina de influência geral, acolhida por limitado número de estudiosos, como Ivan Lins, mas sem a força dinâmica que o caracterizava nas últimas décadas do século XIX.
3.20. Racionalismo

O desenvolvimento do método matemático, considerado como instrumento puramente teórico e dedutivo, que prescinde de dados empíricos, e sua aplicação às ciências físicas conduziram, no século XVII, a uma crescente fé na capacidade do intelecto humano para isolar a essência no real e ao surgimento de uma série de sistemas metafísicos fundados na convicção de que a razão constitui o instrumento fundamental para a compreensão do mundo, cuja ordem   interna,  aliás,  teria  um caráter racional. Essa    era a idéia central comum ao conjunto de doutrinas conhecidas tradicionalmente como racionalismo, e cuja primeira manifestação aparece na obra de René Descartes.

O termo racionalismo pode aludir a diferentes posições filosóficas. Primeiro, a que sustenta a primazia, ou o primado da razão, da capacidade de pensar, de raciocinar, em relação ao sentimento e à vontade. Tal forma ou modalidade de racionalismo seria mais propriamente chamada intelectualismo, pressupondo uma hirarquia de valores entre as faculdades psíquicas. Em segundo lugar, racionalismo significa a posição segundo a qual só a razão é capaz de propiciar o conhecimento adequado do real. Por fim, o racionalismo ontológico ou metafísico consiste em considerar a razão como essência do real, tanto natural quanto histórico.

Respectivamente, essas posições correspondem ao racionalismo psicológico, racionalismo gnoseológico ou epistemológico e racionalismo metafísico. Em comum, existe a convicção de que a razão constitui o instrumento fundamental para compreensão do mundo, cuja ordem interna seria também racional. O sentido filosófico de razão, todavia, não pode ser fixado apenas a partir da linguagem corrente. O termo grego que a designa desde o nascimento da filosofia grega, logos, indica, embora não deixe de se referir à noção de cálculo, o discurso coerente, compreensível e universalmente válido. Caracteriza, além do discurso, o que ele revela, os princípios daquilo que “é” verdadeiramente. Em contraposição, os sofistas defenderam um pensamento “desse mundo”, o da consciência comum.

3.20.1.Racionalismo psicológico

O intelectualismo sustenta que as duas faculdades especificamente humanas são a vontade e a inteligência ou razão. A inteligência é vista como a mais importante sob a alegação de que a vontade ou a capacidade de querer, de decidir, é faculdade cega, cujas operações dependem da inteligência que, por definição, é a capacidade de iluminar e de ver. As filosofias intelectualistas opõem-se às filosofias voluntaristas e sensualistas.

3.20.2. Racionalismo epistemológico
Posição filosófica que afirma a razão como única faculdade de propiciar o conhecimento adequado da realidade. A razão, por iluminar o real e perceber as conexões e relações que o constituem, é a capacidade de apreender ou de ver as coisas em suas articulações ou interdependência em que se encontram umas com as outras. Ao partir do pressuposto de que o pensamento coincide com o ser, a filosofia ocidental, desde suas origens, percebe que há concordância entre a estrutura da razão e a estrutura análoga do real, pois, caso houvesse total desacordo entre a razão e a realidade, o real seria incognoscível e nada se poderia dizer a respeito.

3.20.3. Racionalismo metafísico

O racionalismo gnosiológico ou epistemológico é inseparável do racionalismo ontológico ou metafísico, que enfoca a questão do ser, pois o ser está implicado no pensamento do ser. Declarar que o real tem esta ou aquela estrutura implica em admitir, por parte da razão, enquanto faculdade cognitiva do ser humano, a capacidade de apreender o real e de revelar a sua estrutura. O conhecimento, ao se distinguir da produção e da criação de objetos, implica a possibilidade de reproduzir o real no pensamento, sem alterá-lo ou modificá-lo.

3.20.4. Racionalismo clássico e tendências posteriores

Dois elementos marcariam o desenvolvimento da filosofia racionalista clássica no século XVII. De um lado, a confiança na capacidade do pensamento matemático, símbolo da autonomia da razão, para interpretar adequadamente o mundo; de outro, a necessidade de conferir ao conhecimento racional uma fundamentação metafísica que garantisse sua certeza. Ambas as questões conformaram a idéia basilar do Discours de la méthode (1637; Discurso sobre o método) de Descartes, texto central do racionalismo tanto metafísico quanto epistemológico.

Para Descartes, a realidade física coincide com o pensamento e pode ser traduzida por fórmulas e equações matemáticas. Descartes estava convicto também de que todo conhecimento procede de idéias inatas -- postas na mente por Deus -- que correspondem aos fundamentos racionais da realidade. A razão cartesiana, por julgar-se capaz de apreender a totalidade do real mediante “longas cadeias de razões”, é a razão lógico-matemática e não a razão vital e, muito menos, a razão histórica e dialética.

O racionalismo clássico ou metafísico, no entanto,   cujos  paradigmas seriam o citado Descartes,

Spinoza e Leibniz, não se limitava a assinalar a primazia da razão como instrumento do saber, mas entendia a totalidade do real como estrutura racional criada por Deus, o qual era concebido como “grande geômetra do mundo”.

Spinoza é o mais radical dos cartesianos. Ao negar a diferença entre res cogitans -- substância pensante -- e res extensa -- objetos corpóreos -- e afirmar a existência de uma única substância estabeleceu um sistema metafísico aproximado do panteísmo. Reduziu as duas substâncias, res cogitans e res extensa, a uma só -- da qual o pensamento e a extensão seriam atributos.

Leibniz, o último grande sucessor de Descartes, baseou sua doutrina na “harmonia preestabelecida” da realidade por obra da vontade divina. Distinguiu as verdades de fato -- contingentes e particulares -- das verdades de razão -- necessárias e universais --, porém considerou as primeiras redutíveis às segundas. Desse modo, se conhecêssemos as coisas em seu conceito, como Deus as conhece, poder-se-ia prever os acontecimentos, uma vez que a estrutura do real é racional ou inteligível. Assim sendo, o método da ciência não poderia ser o da indução, mas a dedução.

Sob uma perspectiva contrária, os empiristas britânicos refutaram a existência das idéias inatas e postularam que a mente é uma tabula rasa ou página em branco, cujo material provém da experiência. A oposição tradicional entre racionalismo e empirismo, no entanto, está longe de ser absoluta, pois filósofos empiristas como John Locke e, com maior dose de ceticismo, David Hume, embora insistissem em que todo conhecimento deve provir de uma “sensação”, não negaram o papel da razão como organizadora dos dados dos sentidos. O próprio fato de haver toda esta controvérsia em torno da problemática suscitada por Descartes revela a importância crucial das teses racionalistas.

O racionalismo cartesiano e o empirismo inglês desembocaram no Iluminismo do século XVIII. A razão e a experiência de que resulta o conhecimento científico do mundo e da sociedade bem como a possibilidade de transformá-los são instâncias em nome das quais se passou a criticar todos os valores do mundo medieval.

A nova interpretação dada à teoria do conhecimento pelo filósofo alemão Immanuel Kant, ao desenvolver seu idealismo crítico, representou uma tentativa de superar a controvérsia entre as propostas racionalistas e empiristas extremas.

Entendido como posição filosófica que sustenta a racionalidade do mundo natural e do mundo humano, o racionalismo corresponde a uma exigência fundamental da ciência: discursos lógicos, verificáveis, que pretendem apreender e enunciar a racionalidade ou inteligibilidade do real. Ao postular a identidade do pensamento e do ser, o racionalismo sustenta que a razão é a unidade não só do pensamento consigo mesmo, mas a unidade do mundo e do espírito, o fundamento substancial tanto da consciência quanto do exterior e da natureza, pressuposto que assegura a possibilidade do conhecimento e da ação humana coerente. Para além de seus possíveis elementos dogmáticos, a filosofia racionalista, ao ressaltar o problema   da  fundamentação  do  conhecimento  como base da especulação filosófica, marcou os rumos do pensamento ocidental.

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